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Ética e Cultura

Entrevista ao Jornal de Letras, por Maria João Martins, em 1995

Publicação · 1995-03-15

Entrevista por Maria João Martins

Fez muito de quase tudo. Como jornalista foi fundadora do semanário «Expresso», trabalhou na RTP, na ANOP e adquiriu uma mundividência que mantém. Como mulher de acção, tornou-se presidente do Centro Nacional de Cultura (cujo cinquentenário se comemora este ano) e transformou-o no que é actualmente uma estrutura fundamental na cultura do País. Hoje, acumula essas funções com a de deputada ao Parlamento Europeu, estando integrada na Comissão de Cultura, Educação, Juventude e Comunicação Social. Bem-disposta e essencialmente optimista, Helena Vaz da Silva é uma mulher de ideias fortes e concretas. Não dispensa a coerência e não dissocia cultura de ética e civismo.

“Nas várias actividades que tive, senti sempre que fazia a mesma coisa. Não houve rupturas”, diz-nos Helena Vaz da Silva, 55 anos, presidente do Centro Nacional de Cultura e deputada ao Parlamento Europeu. A coerência, nota-se ao longo da conversa que mantemos, norteia-lhe a acção, desde os tempos em que dava uma «mãozinha» interessada na revista «O Tempo e o Modo» e na Livraria Moraes até aos dias de hoje, em que o ideal de uma Europa unida na diversidade a recrutou.

Extremamente simpática e disponível, transforma rapidamente a entrevista em conversa amena. Fala do cinquentenário da instituição a que preside, das saudades do jornalismo, do seu conceito de Europa e de cultura, da vida e ... de astrologia com a sinceridade própria dos que não dissociaram inteligência e emoção.

O CINQUENTENÁRIO DO CNC

No momento em que se assinalam os cinquenta anos do Centro Nacional de Cultura (que dirige há quinze anos), Helena Vaz da Silva é uma presidente orgulhosa e atenta. Ao chegar, encontrou uma pequena estrutura, um quase círculo de amigos bem-intencionados que prolongavam no tempo as tradições de cultura e independência próprias do Chiado. No local onde, agora, está o seu gabinete surpreendeu-se - e deliciou-se - com o que restava de um velho atelier de uma modista de sucesso. Lá estavam os livros com as secretíssimas medidas dos grandes nomes do Estado Novo, os suportes para os ferros de engomar (ainda a carvão) e a biblioteca («muito típica da época») que terá pertencido à antiga residente. O Centro Nacional de Cultura cresceu e o espaço disponível tornou-se exíguo. As preciosidades da costureira foram para o sótão, mas Helena Vaz da Silva, sempre preocupada com a memória e sua preservação, não as esqueceu. «Quando aqui cheguei - recorda - tive de fazer tudo. Hoje, há uma equipa de gente nova, e isso, para mim, é muito importante. E ótimo saber que tenho continuadores e que esta obra continua para além de mim». E logo a seguir desabafa, com a segurança de quem muito reflectiu sobre a realidade cultural portuguesa: Creio que isto é muito importante num país como o nosso, onde surgem muitas ideias, mas falta a persistência».

Ao olhar retrospectivanente estes quinze anos, Helena Vaz da Silva não destaca momentos decisivos por oposição a tempos mortos. «As coisas foram acontecendo - diz -, iam surgindo as ideias, iam aparecendo as sugestões. Por exemplo, os nossos passeios de domingo começaram por ser passeios em Lisboa, para se transformarem em passeios pelo País e, finalmente, em viagens, tão grandes e aventurosas, que deram lugar à publicação de “diários de bordo" (de que Jorge Listopad e Fernando Dacosta são alguns dos autores)”. Ao olharmos o que é hoje o Centro Nacional de Cultura, imaginamos este percurso, todo facilidades, cheio de ofertas e de apoios. Mas não, muito pelo contrário. «Ainda hoje não é fácil - esclarece Helena Vaz da Silva - porque continuamos a não ter apoios assegurados. Há quinze anos, criámos o mecenato ainda antes de ele ser institucionalizado. Fomos falar com as empresas e mostrámos-lhes que nos Estados Unidos era assim que se faziam as coisas. De resto, não lhes pedimos que financiassem esta ou aquela iniciativa, mas propusemos-lhes que pagassem) uma quota anual». Esta capacidade de combate permitiu a Helena Vaz da Silva pôr em marcha o seu próprio conceito de cultura. Um conceito que, longe de ser elitista, está profundamente ligado à ética e ao civismo. Optimista por natureza no que à condição humana respeita («tanto que fazem troça de mim!»), conduz-se pela convicção de que «este arrastar dos pés dos portugueses não é uma fatalidade». A propósito, lembra um dos momentos mais engraçados da história da sua presidência no Centro: «Propusemos às pessoas uma feira de trocas, onde não haveria dinheiro, mas troca de objectos. Foi muito engraçado porque gente de todas as idades começou a trazer caixas de bolachas antigas, cabeleiras postiças. Foi tão bom que repetimos. E divertimo-nos muito. Para mim, isto mostra que se apelarmos ao sentido lúdico e à imaginação das pessoas, podemos tirá-las de frente da televisão». O objectivo não é dourar a pílula da existência, mas alterar mentalidades e comportamentos. «Lutar contra a fatalidade da vida cinzenta não é dar-lhe cores artificiais ou sensações falsas de cor. Pelo contrário, impõe-se dar-lhes instrumentos para que se tornem cidadãos activos”.

A esta preocupação constante acrescenta-se a «obrigação» de merecer uma herança que Helena Vaz da Silva é categórica em definir assim: «Extremamente responsabilizante e estimulante”. «O Centro - recorda - foi criado há cinquenta anos por pessoas conservadoras que, no entanto, se sentiam abafadas pelo regime existente. Criaram então um espaço de liberdade que, depois, acompanharia a história das ideias e do combate político em Portugal». Mas a obra está longe de se completar. Para já, Helena Vaz da Silva entusiasma-se com o vasto programa de comemorações da efeméride e, sobretudo, com as obras para a construção do café do Centro - velho sonho que se concretizará mal a câmara dê o seu aval.

NO PARLAMENTO EUROPEU

Entre a presidência do Centro e as funções de Helena Vaz da Silva como deputada ao Parlamento Europeu (desde as eleições do ano passado) poderia existir um abismo. Mas ela esforça-se para que não haja. Da sua vida política, diz apenas: «Sempre estive muito afastada da política. A minha actividade de jornalista levou-me a ver sempre os vários lados e a acreditar que a verdade não estava concentrada num único local». Por isso, o que a levou a aceitar o convite endereçado pelo PSD para integrar as suas listas prende-se exclusivamente com o seu conceito de Europa e com as suas convicções sobre o futuro de Portugal. «Estas questões vinham-me preocupando muito. Se a Europa é um destino nosso, temos de saber o que queremos que ela seja, sobretudo nos próximos cinco anos, que vão ser básicos para o futuro». Mas, como ela própria reconhece, «há muitas maneiras de estar no Parlamento Europeu, que é uma máquina enorme e pesadíssima”. «No entanto - esclarece -, se tivermos uma ideia bem concreta do que se quer fazer, as coisas acabam por fazer o seu caminho. Às vezes basta introduzir algumas palavras nos textos dos dossiers e estar com atenção às oportunidades”. Integrada na Comissão de Cultura, Educação, Juventude e Meios de Comunicação («para mim a mais importante para a definição do futuro»), Helena Vaz da Silva fala do seu trabalho com o entusiasmo doce que a caracteriza. «Esta comissão lida directamente com os conteúdos. A Europa já está razoavelmente servida de vias de comunicação, mas em matéria de conteúdos continua completamente dominada por americanos e japoneses, nomeadamente ao nível dos softwares informáticos e dos CD-ROM”. Esta comissão tem, actualmente, entre mãos alguns projectos que fazem os «encantos» da deputada. Um deles é o chamado «Programa Sócrates», cujo objectivo é a intensificação do intercâmbio de estudantes e professores dos vários países membros, desde o ensino secundário (o que, saliente-se, é inédito). Outro trabalho importante é ainda o «Programa Juventude para a Europa», que fixa orçamentos maiores e percentagens mínimas de participação (agora na ordem dos 10%) no intercâmbio de jovens, no âmbito da sua formação e carreira profissional, Estes programas integram-se naquilo que Helena Vaz da Silva entende por Europa: «Trata-se de uma realidade unidiversa, na qual temos de saber desenvolver e afirmar as identidades regionais e culturais, embora sabendo que, ao consolidarmos a unidade da Europa, estamos a tratar da nossa própria sobrevivência”.

CATÓLICA PROGRESSISTA

A independência interessada que a relaciona com a política é, de certo modo, extensiva à Igreja Católica. «Sinto que a minha matriz é cristã - declara Helena Vaz da Silva -, mas, neste momento, não tenho prática. Sou muito influenciada por um conceito de Igreja não castradora, muito ligada à Igreja defendida por João XXI. Este Papa foi um cometa que passou, e que entendia que a Igreja devia ajudar as pessoas a resolver os seus problemas e não constituir-se em mais um problema”.

Esta relação levou-a a integrar, durante os anos 60, o movimento dos chamados católicos progressistas, de que faziam parte, entre outros, António Alçada Baptista e João Bénard da Costa. Se o núcleo aglutinador era a Livraria Moraes, então adquirida pelo primeiro (e curiosamente localizada nas traseiras do que é hoje o Centro Nacional de Cultura), este grupo destacou-se por duas iniciativas que mudaram irreversivelmente a Lisboa cultural anterior ao 25 de Abril. Tratam-se, claro está, do famoso Cineclube - CCC -- e da revista O Tempo e o Modo. «O CCC – recorda Helena Vaz da Silva - distinguia-se dos outros cineclubes de Lisboa - o ABC e o Universitário - pelo facto de defender o cinema americano como uma forma cultural. Isto não acontecia com os outros, que privilegiavam o cinema europeu».

Quanto à revista O Tempo e o Modo, a nossa interlocutora não hesita em classificá-la como uma «pedrada no charco» da realidade portuguesa de então. «Foi uma iniciativa muito heterodoxa em relação ao que se concebia por cultura», afirma. «Para a esquerda, cultura era igual a neorrealismo, a arte com mensagem social. Para eles, éramos uns reaccionários».

Na mesma época, surgiu a versão portuguesa da revista Concilium, inspirada pelos ventos de mudança que sopravam do Concílio Vaticano II. Mas a luta por essa edição não foi pacífica, num Portugal em que a Igreja se mantinha tão estagnada como as demais instituições. «A Livraria Moraes - conta Helena Vaz da Silva – ficou com a edição portuguesa, mas o Cardeal-Patriarca não nos concedeu a ordem de impressão. Por isso, arranjámos um subterfúgio. Colocámos a sede da revista no Recife (com autorização dessa excepcional figura que foi D. Hélder Câmara) e iniciámos a publicação. Reflectíamos sobre os chamados teólogos da libertação e sobre um catolicismo virado para a acção. Recordo que os católicos progressistas tinham uma acção muito diversificada. Alguns apoiavam clandestinamente os exilados políticos. Eu, no entanto, funcionava mais à vista»

SAUDADES DOS JORNAIS

Ao perguntarem-lhe pela profissão, o primeiro impulso de Helena Vaz da Silva é responder jornalista. Deixada a actividade (embora não completamente, como se verá), ela mantém intacta uma atitude de curiosidade e autonomia que diz ter herdado dos tempos em que foi uma das mães do semanário «Expresso». «Tenho imensas saudades do jornalismo - declara -, mas vou fazendo o meu “circuito de manutenção" para não perder o tom (neste momento, por exemplo, tenho umas crónicas na rádio)».

No seu doce património de saudades, os primeiros tempos do «Expresso» têm parte de leão. «Vivíamos intensamente como uma equipa, que passava toda a noite na tipografia», recorda, «Eramos tão poucos - doze - que cada um era responsável por uma secção. Eu tinha toda a revista e os artigos de opinião a meu cargo, o que implicava muito trabalho, mas foi inesquecível». Antes do 25 de Abril, lembra, foi a irreverência súbita. «Os outros jornais, alguns com jornalistas óptimos e inconformistas, tinham, no entanto, de se acomodar para sobreviver. Nós não. Éramos novos e tínhamos “o sangue na guelra”. Foi-nos permitido experimentar um novo conceito de jornalismo, em que se ouviam as várias partes envolvidas na notícia”. Depois da revolução, foi o entusiasmo próprio dos tempos que iam correndo: «Nessa altura, O jornal deu muita autonomia aos seus jornalistas, pelo que nas páginas do “Expresso" coexistiam tranquilamente a opinião PCP, MRPP ou PSD,» No jornalismo, Helena Vaz da Silva experimentou um pouco de tudo - o que, reconhece, só lhe fez bem. Do «Expresso» passou para a RTP, tendo transitado ulteriormente para a extinta agência noticiosa ANOP. Ali, habituada à liberdade criativa e opinativa do «Expresso», estranhou a «proibição do uso de adjectivos». No jornalismo, como em tudo, a preocupação ética e cultural não a abandonou, «Fiz muito jornalismo cultural - declara - e, mesmo quando fazia entrevistas, puxava muito pelos conceitos globais”.

«FORTE POR FORA FRÁGIL POR DENTRO»

Atenta e interessada por tudo o que a envolve, Helena Vaz da Silva tem a clarividência de encontrar um fio comum ao que parece díspar. Um fio de vida, diga-se. Os ensinamentos da astrologia, por exemplo, não lhe são estranhos, nem lhe parecem frívolos. «Acho que há alguma coisa de importante nessas sabedorias tradicionais que nós tendemos a rejeitar. Alguma coisa sobre o interior de nós próprios, o que é importante, numa época em que somos tão bombardeados pelo exterior”. Caranguejo de signo, só compreendeu o que isso é, quando, em Paris, assistiu à peça «Adriano VII». Esta história sobre um homem que o acaso do destino tornou papa e que morrerá assassinado após procurar implantar medidas que os terríveis bastidores do Vaticano não aprovavam, terminava com um actor a pronunciar estas palavras: «Tudo isto aconteceu porque Adriano VII nasceu sob o signo do Caranguejo, que é forte por fora e frágil por dentro”. Mas fragilidade, como salienta Helena Vaz da Silva, não é fraqueza nem tão-pouco falta de determinação. «Se tivesse de ter um lema - conclui bem-humorada - adoptava o daquela velhota francesa que, há dias, fez 120 anos: agir”.

Jornal de Letras
Quarta-feira, 15 de Março de 1995

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