Destruir o imperialismo dentro e fora de nós
Entrevista de Helena Vaz da Silva ao realizador Robert Kramer, em 1975
Robert Kramer, um presidente americano
SOUBEMOS QUASE que por acaso que Robert Kramer estava por uns dias em Lisboa. Vindo de Cannes, de regresso aos Estados Unidos - de onde, nos últimos anos não tem saído tal a pressão do trabalho de "organização" que leva a cabo com os "camaradas". Assim no-lo disse, quando o fomos descobrir entre uma sessão de Conselhos Revolucionários, uma visita a uma aldeia perdida do centro do país e umas conversas com a gente de cinema - que ele insiste em não considerar seus iguais. E que, diz, não consegue ver-se como cineasta, mas sempre e só como "revolucionário socialista e anti-imperialista" que faz cinema. Apesar disso, o seu último filme apresentado agora em Cannes e que - caso excepcional - foi seleccionado por dois dos júris do Festival - provoca longas e insistentes bichas à porta do cinema que o exibe. E "Milestones" - história dos americanos que, nos anos 60, procuraram viver vidas diferentes - dura quase quatro horas.
Helena Vaz da Silva
EXPRESSO - Sei que V. vem de Cannes aonde foi para apresentação do seu último filme "Milestones" que foi exibido - oiço dizer que com enorme sucesso. Porque é que decidiu vir a Portugal, por mera curiosidade ou tem planos para fazer cá alguma coisa?
ROBERT KRAMER - Fui a Cannes porque as pessoas que produziram o meu filme me pediram que lá fosse. E os meus camaradas nos Estados Unidos acharam bem a ideia. Mas concordámos todos que, vindo à Europa com toda a despesa que isso implica, era indispensável vir a Portugal para obter toda a informação de que precisamos lá. Foi uma missão política.
EXP - Veio, portanto, para perceber a situação política portuguesa.
R.K. - Sim, ela é muito mal conhecida nos Estados Unidos.
EXP - E por que lhes interessa tanto compreender a situação portuguesa? Em que medida ela pode interessar à luta da esquerda americana?
R.K. - Interessa-nos porque é uma situação revolucionária cuja análise crítica nos ajuda a combater o imperialismo americano. Parece-nos que há muita esperança em Portugal. A nós interessa-nos tudo o que é progressivo e neste momento acontecem aqui a toda a hora coisas progressivas. Sobretudo queríamos perceber o exército, o MFA. E os partidos e suas relações com os movimentos de massas em Portugal?
Qual é a Luta em Portugal?
EXP - Atendendo a que as situações são tão diferentes (em geral e o papel do exército, dos partidos etc.) o que é que, daquilo que viu, V. acha que pode ser útil para vocês?
R.K. - Não sei. O que interessa é que nós partimos dum ponto para a nossa análise: que o imperialismo americano é um sistema mundial. É um facto que o controle por ele exercido é o que impede os povos do mundo de terem um desenvolvimento revolucionário. Esse imperialismo enfraquece à medida que se distancia dos Estados Unidos. Temos o exemplo do Vietname. Há muito a aprender com a guerra da Indochina, não apenas no que diz respeito à organização dos vietnamitas, mas na medida em que aí se deu uma importante derrota do imperialismo americano. No Terceiro Mundo, ele está muito fraco. De qualquer modo, qualquer ponto do globo onde se lutou contra ele nos interessa. No que se refere a Portugal, queríamos perceber por que é que realmente se luta. Se é simplesmente por tornar Portugal uma parte da Europa avançada – caso em que, de uma forma ou de outra, entraria na esfera do imperialismo americano - ou se se trata de uma luta anti-imperialista.
EXP – E o que concluiu?
R.K. - Que se tenta que seja este segundo caso. Mas subsistem muitas contradições. Parece-me que, depois de um ano, a luta política está atingindo certos pontos críticos. O papel do Partido Comunista, muito virado para a URSS, sua articulação com o MFA, com os partidos de esquerda.... Seria uma presunção da minha parte tentar qualquer espécie de avaliação definitiva... mas levo para os meus camaradas a convicção de que existe aqui potencialmente uma autêntica luta revolucionária do povo e que aconteceram já coisas que poderão virar a actual sociedade de pernas para o ar.
EXP - Por exemplo?
Uma luta contra o tempo
R.K. - Não só a dinamização cultural do MFA, como os Conselhos Revolucionários, toda a espécie de alianças que o MFA está tentando fazer directamente com a base... E parece-me que aqui há sobretudo uma luta contra o tempo. Muitas coisas terão de acontecer muito depressa visto que o contexto, quer interno quer sobretudo externo contém elementos que quererão atrasar a revolução.
EXP - Se as coisas não acontecerem suficientemente depressa...
R.K. - O MFA tem de se tornar um movimento de libertação, fazer despertar a consciência política de todo o povo, os militares, os quadros, todos. Ao mesmo tempo as pessoas têm de se entregar, tentando perceber de que revolução se trata e qual o seu interesse nela. Tudo isto tem de passar-se num contexto em que o imperialismo é um ídolo, um ídolo que tem planos de como entrar em Portugal, de como atrair partidos como o P. Socialista...
EXP - Do seu conhecimento interno do imperialismo americano, como pensa que ele poderá interferir em Portugal? Fala-se de intervenção armada, fala-se de boicote económico...
R.K. - Da experiência recente, com este caso do Cambodja, parece claro que num período em que o imperialismo americano se sente muito ameaçado e sofre terríveis derrotas, por reacção, poderá ter as mais inesperadas atitudes. Quer por pensar que tem de manter o respeito do mundo, quer por sentir os seus interesses directamente ameaçados... Por isso parece-me correcto preparar as pessoas para o pior, até uma invasão física concreta. Enquanto se mantiverem em Portugal resquícios de capitalismo, continua a haver uma base para intervenção.... Contra isto há, por outro lado, um profundo sentimento do povo americano contra qualquer espécie de intervenção americana no exterior... Por isso eles preferirão talvez intervir indirectamente a nível económico, através de um país europeu, até, da França, da Alemanha, da Inglaterra ou através do Japão.
EXP. - Mas qual seria, no seu entender, a justificação oficial para uma intervenção americana no nosso país?
R.K. - Por exemplo, o facto de os segredos da NATO estarem em perigo...Não sei, é uma hipótese. Disse-me por exemplo que as acções do MRPP podiam provocar a reacção americana com base na protecção dos seus súbditos. Eu acho que é preciso muito mais do que isso para que aconteça, mas pode acontecer... Eu só sei que, em todas as fases da guerra do Vietname nós subestimámos a vontade de luta do imperialismo. Pensávamos que não havendo diplomaticamente razão para continuar a lutar, não o fariam...E continuavam. Os vietnamitas é que nunca os subestimaram campanha de esclarecimento que iremos empreender agora nos Estados Unidos alertaremos as pessoas para o perigo de uma intervenção física dos Estados Unidos em Portugal e do mal que isso seria...
EXP. - V. falou do enfraquecimento do imperialismo em vários pontos do globo, falou, por outro lado, da oposição do povo americano, a novas formas de intervenção americana. Quer isso dizer que o imperialismo americano está a acabar ou que está apenas a mudar de face, a encontrar nova forma?
R.K. - O imperialismo está a acabar, tem de acabar. Ele éa última forma de dominação, de exploração do homem pelo homem. Mas não sei calcular em termos de anos, não sei se será durante a minha vida ou a sua...
EXP - Mas acredita que um dia a América terá deixado de ser imperialista?
R.K. - Acredito que um dia teremos a oportunidade de ter a nossa revolução, como os outros. Não acredito que o imperialismo regresse calmamente, que se converta devagar numa social democracia.... Será preciso um levantamento social total.
«Revolucionários anti-imperialistas»
EXP - Como será possível uma revolução num país tão grande e diversificado como é a América? E qual é essa nova face da América que você imagina?
R.K. - Nós chamamo-nos a nós próprios revolucionários anti-imperialistas. O que quer dizer que temos duas frentes de luta. Uma contra o imperialismo, outra pela revolução socialista. E não é possível uma revolução que envolva todos os americanos de uma maneira autêntica se o imperialismo não tiver sido primeiro completamente aniquilado. Sobretudo pelos povos do Terceiro Mundo. O imperialismo tens uma maneira de dar tanta prosperidade, tanta satisfação, tanta liberdade (económica) aos americanos, a partir da exploração dos povos do exterior, que tal estratégia tem sido até agora bem-sucedida no sentido de dividir o nosso povo, parte do qual suporta um sistema que lhe traz vantagens.
EXP - Qual é a América por que V. luta?
R.K. - Uma América comunista.
EXP - Mas isso não tem que ver com o Partido Comunista Americano para vocês, pois não? Se pretende uma América comunista, por que não apoia o Partido Comunista?
R.K. - É que o nosso Partido Comunista é uma velharia. Desempenhou um papel importante no passado, tem uma história corajosa de luta. No meu tempo de vida, o Partido constitui uma força de reforma, tornou-se um partido revisionista. é um partido que já não tem o conteúdo cultural do espírito revolucionário, nem sequer já o conteúdo político. A sua linha política hoje em dia não é muito diferente da do Partido Democrático americano.
EXP - Porquê?
R.K. – É uma história complicada, que tem muito a ver com o que se passou nos anos cinquenta, com o extremismo anti-comunista dessa altura. Uma coisa que também nos é difícil de compreender são os termos do comunismo mundial no fim dos anos trinta, com as depurações russas. Desde essa altura, a verdade é que o PC americano não conseguiu mais ultrapassar os seus hábitos burocráticos intransigentes, com as suas oscilações para trás e para a frente entre a linha russa e o liberalismo americano. As razões que impediram o Partido Comunista americano de se manter revolucionário são para nós fonte de lições importantes. Um dos erros dos movimentos de massas dos anos sessenta foi o seu completo desprezo pelo partido comunista. Não possuindo qualquer contexto histórico com a situação da Europa, ele nunca pôde ser para nós uma alternativa. Na Europa, em Portugal, por exemplo, o PC tem uma admirável tradição de luta. O nosso Partido não tem tais credenciais a apresentar ao longo dos últimos quarenta anos. Tem uma história escondida de coragem que nós só agora temos possibilidade de começar a descobrir.
A nova esquerda
EXP. - Se não é o Partido que mantém viva a semente da revolução nos Estados Unidos então quem é?
R.K. As formas que toma a vida política nos E.U. são totalmente diferentes das daqui. Havia nos anos sessenta um movimento de massas muito militante que, no entanto, não tinha nenhuma organização central. Havia uma organização de massas estudantil que era o SDS (Students for Democratic Society) mas para além dele havia muitos "projectos organizativos” como nós lhes chamávamos. Assim por exemplo, eles surgiram em comunidades pobres onde os militantes iam para contactar com as pessoas e assim criavam organizações totalmente independentes das instituições que lutavam pelas necessidades básicas da comunidade.
EXP. - Havia uma ideologia comum a esses grupos? Eram de inspiração marxista, por exemplo?
R.K. - Não eram marxistas. Eram anti-imperialistas (contra a guerra do Vietnam contra as intervenções americanas no estrangeiro), eram anti-racistas...
EXP. - Pacifistas...
R.K. - Algumas sim, mas não todas. Eram todas muito próximas das lutas revolucionárias do Terceiro Mundo e dos negros americanos. Era marxista apenas no sentido em que era materialista, contra a exploração, mas não num sentido apenas económico.
EXP. - Entrava também a componente de libertação sexual?
R.K. - Nem sempre, mas para o fim dos anos sessenta, isso era já comum a quase todos. Ao mesmo tempo, havia todo um conjunto de ideais utópicos e comunitários, pessoas vivendo juntas a tentar suplantar os limites da "família burguesa'.... Foi um movimento muito denso: era muito militante, pragmático, com tendências anarquistas, saudável, mas não muito forte ideologicamente...
EXP. - Sem organização nacional e sem lideres.
R.K. - Houve algumas personalidades importantes, mas nenhuma chegou a representar o conjunto do movimento. Havia muitaspequenas organizações e a maior de todas foi de facto o SDS. Durante esse período, aquilo a que chamamos a "velha esquerda". A esquerda antes de nós formada pelo Partido Comunista, o Partido Socialista dos Trabalhadores, o Partido Socialista, tiveram um papel bastante irrelevante. Eles tiveram o seu papel em certas fases da luta, mas ninguém se sentia obrigado a ingressar nas suas fileiras.
EXP. - Esta foi, portanto, a “Nova Esquerda" (New Left). Quando V. diz "nós" quando V. diz "os meus camaradas" ou "o meu grupo" a que se refere V. exactamente?
R.K. - Refiro-me auma certa forma de camaradagem desenvolvida no período a que já me referi, semelhante à que vocês desenvolveram cá durante o período fascista e que se traduzia em redes, nem sempre clandestinas o nosso movimento foi sempre bastante às claras) de pessoas com a mesma ideologia que trabalhavam juntas em tempos e lugares diferentes. Juntavam-se -assim às vinte ou trinta, iam para o campo realizar um projecto comum. Baseava-se de facto em relações de camaradagem no sentido em que se tratava de pessoas que tinham compartilhado experiências, o que era ao mesmo tempo a sua fraqueza, porque apoiava-se muito no espírito de amizade, urna espécie de clubes de velhos amigos, em detrimento de «ama organização real. A maior parte dessas pessoas vieram de movimentos estudantis que, por nunca terem desenvolvido formas de organização extra-universitárias, se espalharam sem estruturas organizativas.
A «nova esquerda» renovada
EXP - Isso era nessa altura. Mas agora o que é "nós" para si?
R.K. - Hoje "nós" são pessoas ao longo da costa oeste dos-Estados Unidos que são aquelas a quem levarei, por exemplo, imediatamente as informações que levo de Portugal. São pessoas que trabalham em jornais, que os editam, que trabalham em comunidades com pessoas, alguns pertencem mesmo a organizações. Essas comunidades hoje dedicam-se todas à formação de quadros, em ligação com diversas organizações. O trabalho consiste em descobrir as necessidades das pessoas, tentar perceber qual a forma de propaganda adequada para levá-las a adquirir uma certa perspectiva política, em resumo, descobrir a forma de mobilizar essas energias coras objectivos políticos. Por um lado, procura-se atender às suas carências essenciais e ao mesmo tempo organizá-las politicamente. Isso aqui será o equivalente ao trabalho das comissões de bairro. A partir de 71/72, desenvolveu-se na América um trabalho de formação politica e ideológica, o que não existia nos movimentos dos anos sessenta. Sentimos que não podíamos mais continuar a pretender resolver as coisas só com a imaginação, precisávamos de uma orientação ideológica que nos desse solidez. Houve então um impacto do marxismo-leninismo em toda a esquerda, incluindo nos movimentos de mulheres e todos tiveram que pensar em termos da sua localização em relação às correntes principais da revolução mundial. Houve aqui, simplificando, duas orientações. Uns achavam que era preciso fundar um novo Partido Comunista - estes incluíam grupos que podiam ir do correspondente ao MRPP até coragem que nós só agora temos possibilidade de começar a descobrir a linhas moderadas embora rejeitando o revisionismo do Partido Comunista. Para eles era essa a principal tarefa do momento. Pensavam que a contradição entre a URSS e a China era a grande contradição do mundo actual.
Havia outra linha - na qual eu me incluo - para quem a formação de um partido é necessária, mas não prioritária e que pensam, de uma maneira geral, em termospróximos dos movimentos de libertação do Terceiro Mundo. Para estes, não é a contradição entre URSS e China que é o principal, mas antes a própria existência do imperialismo americano, enquanto inimigo principal dos povos. O nosso trabalho consiste em mobilizar as pessoas contra o imperialismo enquanto procuramos percebê-lo mais e mais a fundo. Diz-se na América que os americanos são imperialistas fora e capitalistas dentro, usas isso é uma afirmação enganadora. A crise económica que tem originado uma agitação política e social como há muito tempo não conhecíamos é também imperialismo. A guerra está a entrar-nos em casa. O custo da guerra do Vietname está directamente relacionado com a actual crise económica. O importante é fazer as pessoas compreenderem que não existe uma América não imperialista. Pode-se sair do Vietname, mas continua-se a existir e funcionar como sistema de alcance mundial. E o que é preciso que as pessoas compreendam é que mesmo quando pensam que as suas vidas são boas, não o são porque continuaram a ser tão exploradas como todas as outras que vivem debaixo doutros capitalismos ou imperialismos, apenas aqui há um disfarce...
Por exemplo, a crise do petróleo. O governo diz que há falta de energia, mas a verdade é que o problema está na forma como a América explora os países produtores de matérias-primas.
A cultura da resistência
EXP – Parece-me que há uma diferença importante entre as comunidades americanas nos anos sessenta e as actuais. É que as primeiras parece que se constituíram para encontrar uma forma de vida exterior ao sistema, paralela a ele, mas sem tentarem mudá-lo, deixou de haver essas formas de vida que se queriam eternamente paralelas?
R.K. – Às vezes sinto-me frustrado quando tento descrever o que se passa na América, é tão estranho. As comunidades paralelas que se formaram nos anos sessenta foram uma parte muito importante do processo que se desenvolveu na América…
EXP. – O seu último filme “Milestones” é sobre essas comunidades, não é?
R.K. – Sim e não, mas já lá chegaremos. Na América havia algumas pessoas, mas muito, muito poucas que pensavam de facto que a América era uma merda e iam viver a sua vida porque não acreditavam que podiam mudá-la. Havia um grupo muito maior que dizia: temos de mudar nós primeiro para podermos lutar depois e diziam também que, se fossem viver doutra maneira, arrastariam mais pessoas e poderiam influenciar os locais onde vivessem, ajudando-as a mudar a sua relação com o sistema de produção. Tudo isto originou um novo universo cultural. "Milestones" é sobre ele. Não se tratava propriamente de uma cultura alternativa, mas era uma cultura que nos sustentava. Poucas pessoas que dela partilhavam se encaravam como tendo construído uma ilha no meio do sistema. Em "Milestones" é nítido um certo sentimento de culpa que era comum a essas pessoas... De qualquer modo, nós criámos de facto uma nova cultura, uma cultura de resistência. Nem toda a esquerda dela participou, como por exemplo o Partido Comunista, mas ela atinge zonas enormes. É possível encontrá-la espalhada por todos os Estados Unidos, ela atinge os movimentos de mulheres, chega a Holywood, e dela saíram os elementos que formaram as organizações revolucionárias clandestinas americanas. Assim por exemplo, onde quer que vão o Symbionese Liberation Army ou o Patricia Hearst encontram cobertura. Esta cultura é importante, mas não é na verdade revolucionária.
EXP. - A nós parece extraordinário que organizações revolucionárias ou de contra-cultura disponham facilmente dos meios financeiros e dos apoios para fazerem tudo o que querem... De certo modo beneficiam do sistema.
R. K. - É uma das contradições do imperialismo. Para fazer o que quer tem de manter toda a gente satisfeita. Por isso manda todos estudar o que permite a todos ter tempo para pensar, e é por isso que há tanta resistência nas universidades... Mas creio que vai mudar. O dinheiro já não corre com tanta facilidade.
EXP - Donde vem o dinheiro para essas organizações?
R. K. - Umas vezes é das famílias, outras da venda do trabalho altamente especializado de alguns militantes (que podem trabalhar uma semana e ganhar 10 mil dólares ou assim). Há também toda uma organização que lhes permite angariar fundos (restaurantes, armazéns, publicações, etc.). A crise de dinheiro actualmente obriga as pessoas a sair e a estabelecer contactos com os meios de produção. Por exemplo, eu agora fui a Cannes. Chocou-me o funcionamento da indústria do cinema que lá era visível... A primeira vez que entrei num estúdio foi cá em Portugal quando me levaram a ver um filme em preparação... Nunca estive numa escola de cinema...
Cinema - fama de militância
EXP - Como chegou ao cinema?
R.K. - Vivi dois anos num "ghetto" negro em Newark. Um dia vieram umas pessoas fazer um filme sobre a nossa comunidade. Vi-os trabalhar e fiquei impressionado. Foi em 1965. Um amigo meu que, tempos depois, veio ter comigo para eu lhe ajudar a escrever o argumento para um filme sobre os movimentos de guerrilha da Venezuela. Enquanto eles fizeram o filme, fui observando e - com a típica arrogância americana que acha que nada é impossível - achei que também podia fazer um filme. Com um grupo de amigos, tentámos arranjar dinheiro para fazer um sobre o Vietname. Foi impossível, então pensámos num com três histórias, uma feita por cada um. Depois acabou por ser só a minha que se fez, eles filmaram e sonorizaram. Foi o meu primeiro filme, "In the country". Era a história de um casal que vivia numa casa de campo, ele tinha-se reformado da actividade política, sentia-se mal, por isso e toda a vida deles estava envenenada por esse facto, encerrando-os numa relação a dois totalmente destruidora... Quando o mostrei, houve muita gente que achou interesse no filme, fique espantado. Então decidi logo fazer outro, "The Edge"...
EXP - Explique-me lá como é que isso funciona em termos de produção, de financiamento... E depois de distribuição...
R.K. - Bom, o primeiro foi com o nosso último dinheiro pessoal.... Custou quatro mil dólares. Quanto à distribuição havia uma de "underground" que tinha começado nessa altura que pegou no filme e o exibiu sobretudo em universidades, em grupos... Depois "The Edge" - que foi em 35mm, porque o primeiro tinha sido em 16mm - custou oito mil dólares. Barato, como vê. Era só pagar o material e assim... Mas de repente percebemos que nos estávamos a tornar homens de cinema, que estávamos em perigo de perder o contacto directo com a realidade política... Então fundámos o "Newsreel", uma organização que só produzia documentários políticos, filmes produzidos com rapidez que pudessem servir de material de trabalho e propaganda aos militantes. Foi assim que em 68/69 um grande grupo de pessoas desenvolveu a sua acção em torno disto, desenvolvendo ao mesmo tempo um novo sistema de distribuição - porque a rede "underground" não era satisfatória para nós, não atingia as camadas que nos interessavam... Distribuía sobretudo filmes experimentais e "artísticos" para camadas intelectuais. Nesta altura nós passávamos meses a estudar a distribuição ideal para cada filme: como atingir os trabalhadores, o terceiro mundo, todos os estudantes.... Competia a cada um encontrar os contactos e os meios para que o seu filme fosse visto por todos os possíveis interessados.
EXP - Portanto V. é homem de cinema porque é militante... Mas definir-se-ia actualmente a.si próprio como um cineasta?
R.K. - Como lhe disse, não tenho qualquer relação com o mundo do cinema, com a sua indústria. Agora, quando tive de ir a Cannes, pôs-se-me pela primeira vez o problema de me encarar como um homem de cinema, de assumirmos finalmente esse papel de trabalhadores culturais e ligar-nos a outros que o são, inclusivamente estabelecer alguns contactos com a própria indústria a determinado nível. Acabar com esta espécie de esquizofrenia que faz com que, por exemplo, as pessoas com quem vivo quase ignorem que eu faço cinema... E isto é produto de um certo medo doentio em que a gente vive de que qualquer actividade nossa seja chupada pelo grande sorvedouro do amo, por isso calamo-nos, disfarçamos... Mas nós já não temos l8 nem 20 anos, temos experiência bastante para não deixar que isso aconteça e o que temos é de ver como fazer a nossa experiência penetrar a grande máquina e construir um movimento revolucionário e anti-imperialista. O nosso horror do Partido Comunista é precisamente por ver o que lhe aconteceu quando ele decidiu ir ao encontro das estruturas económicas existentes, fazer contactos...
«Milestones»: uma viragem
EXP - O que pensa do que fez até aqui?
R.K. - Fiz dois tipos de filmes: de ficção e os documentários. Com estes últimos, sinto-me totalmente satisfeito, com os primeiros, tenho dúvidas...
EXP - Os seus filmes de ficção são, além dos três que já disse, o "Ice", não é? E os documentários?
R.K. - Foi o "Faln" e "People's War" (sobre o Vietname), além de diversos feitos para o Newsreel. Dos outros, "Ice ' é o que tem sido mais utilizado. É sobre o movimento armado nos E.U., é um filme muito forte. Mas eu não consigo deixar de me sentir incomodado com uma certa distância dos meus filmes de ficção... Com os filmes cubanos, sinto o mesmo. Por exemplo, "Lucia" é um filme bom e tudo, mas fica lá longe... Não lhe sinto a força directa dos documentários...
EXP - O que sente em relação a "Milestones"?
R.K. - "Milestones" foi feito num momento de pausa na minha actividade política. Foi em 1972, quando se assinou o acordo de paz em Paris. Foi um período importante para mim porque era a primeira vez que podia olhar em volta, ver as pessoas viver, não fazer mais nada se não isso…
Um cineasta tem de inventar a sua inserção na revolução
EXP - Esse período acabou?
R. K. - Acabou exactamente porque fizémos "Milestones". À medida que fizémos o filme percebemos as limitações e as contradições da vida que ali descrevíamos e que era a nossa no momento. E sentimos que uma vida assim podia continuar eternamente e que isso seria muito mau. Por isso eu gosto de ter feito "Milestones", mas não gosto que me identifiquem com ele. Aquele filme não é a minha posição, nem pretende apresentar conclusões. É uma maneira que nós temos de conversar com as pessoas sobre aquilo... Quando começámos o filme, éramos mais sensíveis aos aspectos positivos e admiráveis da cultura de resistência: a tentativa de traduzir as convicções políticas na vida do dia a dia, sobretudo nas relações com as crianças, entre homens e mulheres, a busca de formas de vida colectivas.... Quando acabámos, os limites dessa forma de vida eram-nos mais evidentes... E ao vermos e revermos o material do filme incansavelmente, não imagina o que aprendemos... Mas eu continuo a viver assim em grupo, porque penso que, apesar de tudo, há aquisições importantes nessa descoberta americana. Um dos males das revoluções europeias é que a revolução cultural (pessoal, de formas de vida) não acompanha a revolução política. Nós achamos que tem de andar de mãos dadas. Aliás, isso não é problema no Terceiro Mundo onde a construção do socialismo acontece enquanto lutam contra o imperialismo, as duas lutas são inseparáveis... Nós temos cometido alguns erros porque é difícil manter o equilíbrio entre a luta contra o poder do Estado é lutar contra o Estado dentro de nós próprios. Em certos períodos, cometemos um erro cultural, que foi darmos primazia absoluta à nossa luta interior.... Há uma série de problemas em aberto. Por exemplo, em relação aos movimentos de mulheres. Deverá haver separatismo, será ele compatível com uma organização marxista-leninista... Mas que a luta contra o sexismo tem de prosseguir, sem parar, dentro de todas as organizações, é uma evidência. Cá em Portugal, parece-me claro que, sendo as mulheres mais de metade da população, se a revolução se faz sem a sua participação activa, será uma revolução parcial. A luta contra o sexismo tem de fazer parte da revolução de cada um.
EXP - Há mais cineastas como V.? Pode dizer-se que há uma geração de gente como V.?
R. K. - Há muitos, que fazem sobretudo documentários políticos. Nomes, nem me lembro de nenhum...
EXP - Bom sinal, quer dizer que o sistema é mesmo diferente... Agora outra pergunta: V. vê cinema?
R. K. - Pouco. Em Cannes, não vi um único filme, passei o meu tempo a discutir com as pessoas, a argumentar, a convencer... pareceu-me que era para isso que eu lá estava.
EXP - Mas se o convidarem para ir ver um Minelli ou um Godard, V. vai?
R. K. - Eu continuo a ver com enorme deleite esses filmes americanos no meio dos quais eu cresci. Esses grandes filmes fascistas, no sentido em que são feitos para controlarem os espíritos das pessoas, com um argumento tão empolgante, aparências tão suaves que não deixam escolha ao espectador... Mas o cinema que eu faço é o contrário disso. E para levar a pessoa a entrar em diálogo com o filme, em luta...
EXP - Há nomes importantes para si no cinema americano?
R.K. - Não gosto de dizer nomes, esqueço-me deles. Mas posso dizer-lhe que no tempo em que nos formámos, os filmes importantes para nós, os que abanaram toda a nossa geração foram dois: “A Aventura” e o “Sétimo selo”. Mais tarde, foi a “Nouvelle vague” francesa...
Ainda me lembro como esperávamos pelo próximo Godard... influenciou o nosso estilo cinematográfico por muito tempo. Depois foi Rivette com “Paris nous appartient” que foi a mais completa expressão da paranoia política que nós sentíamos, com a destruição do estilo narrativo...
Depois na fase dos documentários, foi o belga Joris Evans. É talvez o mais importante cineasta socialista que vive fora de um país socialista. Fez o que considero o melhor filme sobre o Vietname, “Paralelo 17”. Está agora a acabar um flime sobre a China.
Não há revolução politica sem revolução cultural
EXP - Dos contactos que teve cá com cineastas portugueses, que conclusões tirou quanto à semelhança ou dissemelhança de problemas e de situação dos trabalhadores de cinema cá e na esquerda americana?
R.K. - É difícil para mim julgar a situação dos cineastas aqui. Há uma procura de descobrir novas formas de trabalhar colectivamente, mas com muitas contradições, que são as de todos nós, também na América. Todos vimos da burguesia, e há muita coisa a mudar em nós próprios. Tem de haver uma opção clara da nossa parte: saber de que lado estamos. Escolher se queremos continuar a fazer filmes sobre problemas isolados que dizem respeito às coisas que de facto temos de largar se quisermos acompanhar o processo, ou se fazermos filmes que digam respeito àmaioria das pessoas. É uma escolha difícil. Mas eu trocaria a oportunidade que tive de fazer “Milestones” pela possibilidade de me empenhar até ao fundo no processo de construção do futuro. A razão porque eu recuso encarar-me como um cineasta é também não querer sentir-me fora desse processo, num lugar áparte.
EXP - Em alguns dos nossos cineastas poderá haver de facto essa recusa em se inserir no processo, eles têm uma certa tendência para se encerrarem na sua condição de artistas, à espera que dinheiro e condições venham ter com eles. Foi isso que V. sentiu um pouco quando se referiu às contradições?
R.K. - Sim, creio que há muitas oportunidades para um cineasta entrar no processo revolucionário e compete-lhe inventar a forma de o fazer. Se não será substituído, ultrapassado.