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As viagens de Rossellini

Entrevista de Helena Vaz da Silva a Roberto Rossellini, publicada na "Revista" do Expresso em 24 e Novembro de 1973

Publicação · 1973-11-24
Expresso

NÃO é PRECISO explicar Roberto Rossellini. Por outro lado, ele é um dos poucos que as pessoas acordaram em reconhecer em vida, por outro lado, ele explica-se bem a si próprio e gosta disso. Falar com ele é como deixar correr o rio da vida à nossa frente. Rossellini, homem «carnal até ao escândalo» como disse alguém, veio parar ao cinema por amor. Amor a uma mulher, amor aos homens, amor à vida. «O que é preciso é enfrentar sempre os outros com amor. Amor sempre, amor em tudo, mesmo quando não se ama, jogar o jogo do amor. Emmerder les autres par l'amour, voilá é a única arma possível». E como o que conta é o futuro e ele acredita nos homens, seres inteligentes e desejosos de saber, Rossellini, em vez de «se juntar às filas dos que se arrancamos cabelos», prossegue a sua grande aventura da vida: descobrir e mostrar o que vai descobrindo. Por temperamento, ele vai sempre à frente dos acontecimentos, e, de certa maneira, anuncia-os, mesmo sem querer.

Recorde-se que é ao seu filme «Amore» que a América deve (indirectamente) a revogação do velho código Hayes que, é sabido, controlou a expressão cinematográfica dos americanos até eles descobrirem que a censura era anticonstitucional! Ele veio a Portugal para assistir a abertura da retrospectiva (a primeira tão completa) da sua obra, organizada pela Fundação Gulbenkian, de colaboração com a Cinemateca Francesa. O homem que vimos subir ao palco, terminada a exibição de «Roma, cidade aberta», pareceu-nos irreal de tão real, de tão exactamente certo. Com uma emoção que não escondia nem ostentava, ele falou como sempre filmou: com palavras que tomavam força na sua própria tão evidente existência, palavras que nos eram dadas para que lhes déssemos sentido.

Contou uma história, agradeceu, disse, talvez, uma frase de circunstância, perguntou se alguém, queria falar com ele. Ninguém quis - ou ninguém pôde - e Rosselini, certo como só as essências retirou- se por entre um silêncio incrivelmente pesado deixando-nos a impressão de que ali estava um homem sem contradições, finalmente.

Entrevista de Helena Vaz da Silva

H.V.S. - Entre 61 e 65, há um tempo de quase silêncio em que V. pára de trabalhar para o cinema antes de começar a fazer filmes para a televisão. Há nesse período declarações suas no sentido de um certo desencantamento pelo cinema. Qual o significado disso?

R.R. - Acho de facto que o cinema hoje já não interessa. Acontece com ele o que acontece com tudo. As coisas que se desenvolvem contêm a sua própria morte. O cinema tornou-se de tal maneira uma coisa feita para divertir que nisso se perdeu.

No princípio estava a guerra

«Além disso, há uma descobertazinha que eu fiz: a arquitectura da nossa vida baseia-se na emoção, e a qualidade própria do homem é a inteligência, que não tem nada que ver com a emoção. Esta pode-se-lhe juntar, mas a inteligência é o principal. Por isso, não gosto nada que me definam como artista. Prefiro ser um homem apenas».

H.V. S. - Mas esse seu processo foi lento, foi a pouco e pouco que você foi tomando consciência de que o cinema não o interessava.

R. R. - Eu comecei por ter muita esperança no cinema. No fim da guerra, foi muito importante para nós tomar consciência de como éramos responsáveis. Não interessava se tínhamos estado de um lado ou do outro: éramos todos responsáveis porque é justamente a preguiça e o medo da responsabilidade que levam a que aconteçam coisas dessas.

H.V.S. - Foi, portanto, o fenómeno guerra que o levou a entrar fundo no cinema para responder à situação.

R.R. - Sim, eu já fazia umas coisas antes, mas foi então que tudo tomou sentido. E o que é que me interessou? Em primeiro lugar, não me deixar prender a modelos, a coisas já vistas. Impressionava-me quando era novo ir ao cinema e verificar que em todos os filmes entravam os mesmos ingredientes: ele, ela e o outro (ou a outra). Era sempre do velho triângulo: que se partia. Era horrível isso.

Assim, da minha juventude me ficou o desejo de estar sempre disponível, aderindo à grande aventura da vida, que é a coisa mais importante de todas. Porque não há dúvida que o único tempo real é o futuro. E eu acredito firmemente que estamos no fim de uma civilização.

H.V.S. - Em que sentido?

R.R. - No sentido de fim das estruturas sociais e económicas, fim de tudo aquilo em que acreditamos. As civilizações morrem como os homens morrem, é normal. Se as civilizações não morressem, não havia turismo no Mundo, visto que as pessoas apenas vão ver os cadáveres das civilizações passadas.

H.V.S. - Mas o facto de se sentir no fim de uma civilização, não o impede de ver um sentido na sua própria vida, e ter vontade de fazer coisas.

R.R. - Claro. O fim de uma civilização não significa o fim dos homens, é apenas o fim de certos vícios mentais, de certos hábitos, de certas experiências mais ou menos conseguidas.

H.V.S. - Quando você se desviou do cinema, virando-se para a televisão, quais foram os motivos? Foi por causa dos produtores que o manietavam demasiado? Foi por causa do público que não conseguia contactar? E porquê não ao cinema, e sim à televisão?

R.R. - Porque para fazer cinema temos de sujeitar-nos ao controlo de uma determinada estrutura, que tem certas exigências: o cinema faz-se para dar dinheiro. Como o meu propósito é muito diferente disso, e o dinheiro não me interessa, saltei fora do sistema. E a televisão tem a vantagem de um público imenso. Se compararmos, veja por exemplo que os filmes de maior sucesso em Itália são os James Bond que atingiram ao fim de cinco anos dois milhões de pessoas. Os programas que eu faço para a televisão são vistos numa noite por dez milhões de pessoas.

H.V.S. -  E na televisão não há limitação dos produtores?

R.R. - Eu sou produtor de mim mesmo.

H.V.S. - A retrospectiva que agora se iniciou não inclui os seus filmes anteriores a 45, nem por exemplo a «Anima Nera», que é posterior. Porquê? Será que você renega alguns dos seus filmes?

R.R. - «Anima Nera. é outro caso. Não foi incluída creio que por um erro de Langlois.

Mas o que acontece é que me atribuem muitos filmes que não são meus. Um filme em que, depois de eu o acabar, alguém pegou, cortou, fez nova dobragem, meteu novas sequências, não é meu, não lhe parece? É o caso dos primeiros filmes. Em «Nave Bianca» por exemplo, há vinte minutos que não são meus. Até há quem diga que eu fiz um filme que se chama «Desiderio». Eu nem sei o que ele é. Vejo aqui na lista de Lisboa um filme «Torino» não sei quê. Nunca ouvi falar nele. Há muita gente que se aproveita de um nome, de uma promessa vaga de colaboração feita a uma esquina de rua e assim se explicam esses filmes apócrifos.

O que fiz está feito ando para a frente

H.V.S. - Mas dos filmes que são seus, agora, com uma certa distância entre si e eles, há alguns que você prefira ou que gostasse mais de não ter feito?

R.R. - Estou-me totalmente nas tintas para eles. Nunca revi nenhum filme meu.

H.V.S. - Mas não há certas memórias ligadas a certos filmes, para bem ou para mal?

R.R. - Sim, há histórias que aconteceram durante este filme ou aquele como por exemplo a que eu tive com os produtores de «Roma, Cidade Aberta». Quando lhes apresentei o filme quiseram-me pôr uma acção por não cumprimento do contrato porque diziam que me tinham contratado para fazer um filme e aquilo não era um filme.

H.V.S. - Então ontem à noite foi a primeira vez que você reviu um filme seu. E que filme!

R.R. - Que ideia! Ressonei durante toda a exibição. E o Langlois também.

H.V.S. - Não haverá uma significação profunda nessa sua recusa?

R.R. - Para mim, o que fiz está feito, está acabado. Ando para a frente. É a maneira de não me repetir.

H.V.S. - Pois, você disse-o ontem à noite, e disse também que viver é lutar. Qual é actualmente a sua forma de luta?

R.R. - A minha luta consiste em sair da ignorância.

H.V.S. - Fazendo coisas?

R.R. - Fazendo coisas e aprendendo coisas.

H.V.S. - E tentando transmitir aquilo que aprende, através do cinema?

R.R. - Sim, através das imagens, mais precisamente, visto que não sei fazer outra coisa. Portanto, tento ser o menos ignorante possível e exprimir-me para outros ignorantes como eu. «Eu creio que o mundo de hoje está doente de uma terrível doença, que se chama a semicultura. A semicultura dá às pessoas a ilusão de que sabem e a ignorância torna-se então sólida como betão. Antigamente as pessoas eram ignorantes e sabiam-no, estavam prontas para aprender, hoje, a semicultura deu-nos a todos um orgulho infinito.

O homem gosta de fingir que sabe

H.V.S. - No entanto, essa ignorância dos outros não o faz desesperar de fazer coisas para eles; que são ignorantes e semicultos.

R.R. - Acontece que as pessoas têm desejo de saber. Portanto, interessa oferecer-lhes material. Conheço um pediatra americano, Ornar Moore, que fez experiências com crianças de um ano, e um ano e meio. Ele descobriu que para além dos impulsos elementares de medo e desejo, havia outra atitude elementar e primária no homem que é a de fingir que sabe. Considero isto notável. Se pensarmos bem, de facto, toda a gente finge que sabe. Assim o que eu faço é servir-me desse impulso elementar para fornecer material de saber.

O cérebro humano começa agora a ser conhecido. As descobertas importantes não vão para além de 1962. O que sabemos é que, quando muito bem utilizado, se usam dele apenas dez por cento. Então, por que não fazer tudo para pôr em marcha um instrumento tão extraordinário? Para isso é preciso que o cérebro memorize coisas, que acumule dados, para depois elaborar.

H.V.S. - Você fez «Índia» em 58 e depois disso volta a esse país com frequência e mantém com ele bastantes ligações. Pode-me dizer de que maneira a Índia e o que ela significa o influenciou?

R.R. - A Índia influenciou-me de facto. Posso dizer que descobri que aquilo a que se chama mundo não-desenvolvido é que é o mundo desenvolvido. Porque aquilo a que nós chamamos mundo desenvolvido é-o apenas do ponto de vista técnico. Nós destruímos tudo o resto. O mundo chamado subdesenvolvido não tem uma técnica nem uma economia avançada (que eu até nem sei se é absolutamente necessária), mas tem os seus equilíbrios, autênticas civilizações. Tem o equilíbrio perfeito entre o conhecimento e a ética. A nós falta-nos ética, porque nos falta equilíbrio, porque nos falta conhecimento. Somos especialistas, somos incompletos.

H.V.S. - Quando você fala em desenvolver o cérebro, quer referir-se em particular àquela parte do cérebro que nós, ocidentais, não desenvolvemos ao procurarmos apenas acumular conhecimentos?

Acumulamos «fatias» de conhecimentos

R.R. - Nem sempre acumulamos conhecimentos. Acumulamos fatias de conhecimentos. A especialização é uma doença gravíssima, porque impede todos os contactos. Há quatro anos que eu me dedico totalmente aos assuntos científicos. Vim para a América para a Universidade de Houston no Texas, que é uma cidade muito especial porque é a cidade do futuro, tem o hospital metodista, três imensas universidades, especialistas universalmente conhecidos; o mundo científico está aí especialmente bem representado. Quando lá cheguei descobri de repente um mundo que não conhecia. Apaixonei-me por ele e verifiquei que ele lutava por descobrir formas de comunicação interdisciplinar, e também com o exterior, porque a grande característica do nosso tempo não é a técnica, mas a ciência. Nós confundimos muitas vezes a ciência com a técnica, mas são profundamente diferentes. Um médico não um homem de ciência, é um técnico. Um astronauta, também.

H.V.S. - Você diz que quando chegou a Houston descobriu a ciência. Mas porque é que lá foi?

R.R. - Porque eles criaram um «Media Center» (Centro de Meios de Comunicação) e chamaram-me como especialista para colaborar. Quando lá cheguei descobri a Universidade, que era muito mais interessante que o Media Center.

H.V.S. - Isso correspondeu a que fase da sua obra? A «Idade do Ferro» é anterior a isso, não é?

R.R. - Sim, eu já há tempos atrás procurava investigar a História por uma questão de método. Você sabe que a Psicologia e a Sociologia não são ainda ciências por demasiado especulativas. Acho que um aprofundamento da História as ajudaria a tornarem-se ciências. É um método entre muitos outros. Eu tinha já essa tendência e por isso quando cheguei à América comecei a interessar-me por Cosmologia, Biologia, Matemática…

H.V.S. - E você interessou-se por isso tudo, simplesmente interesse independentemente de qualquer projecto seu?

R.R. - Sim, por curiosidade. A curiosidade é uma grande coisa, não acha?

H.V S. - É a coisa.

R.R. - É a coisa. Foi assim que a pouco e pouco comecei a perceber os problemas e hoje posso já falar em qualquer disciplina e com qualquer pessoa, não como homem de ciência, mas também já não como amador.

H.V.S. - Continua regularmente em contacto com as Universidades americanas?

R.R. - Sim, acabo de chegar há dois dias dos Estados Unidos. Fiz a volta de todas as Universidades da Costa da Califórnia.

A Metabiologia, caminho para o Homem

H. V. S. - Então conhece o Salk Institute?

R. R. - Vou justamente para lá, por uns meses, trabalhar com o Jonas Salk.

H. V.S. - Pergunto-lhe isto, porque me parece que ele procura promover um clima de interdisciplinaridade que corresponde ao seu interesse.

R. R. - Eu conheci o Salk há um mês e foi o «coup de foudre». Ele é um homem extraordinário. Vem da Biologia, mas interessa-se agora pela Metabiologia. Isso a mim atrai-me particularmente, porque tudo o que eu faço é para o Homem.

H.V.S. - E vai agora já. Para lá?

R.R. - Em Dezembro tenho uma reunião de um grupo a que pertenço num Centro Ecuménico em que estarão presentes D. Helder Câmara, Giorgio La Pira, Franz Adler – que é um homem espantoso e pouco conhecido que eu descobri e consegui arrastar para o grupo. Reunimo-nos só para reflectir sobre o futuro e o que há a fazer. Como todos eles são profetas ou visionários, a seu modo, é um clima maravilhoso.

H. V. S. - Vou mudar totalmente de conversa, para Ihe fazer uma pergunta que considero importante: qual o sentido para si de ter vivido e trabalhado com mulheres como Anna Magnani e Ingrid Bergman? Tem-se um bocado a impressão de que cada uma delas marcou um período da sua vida de cineasta.

R. R. - Evidentemente, quando se está apaixonado isso transparece.

Anna e Ingrid

H. V. S. - Pois, mas você apaixonou-se por uma mulher assim e fez um filme assim, e depois apaixona-se por uma assado e faz um filme assado. Era aí que eu queria chegar e que você chegasse. Parece-nos que a Bergman marcou para si uma nova fase em que você se virou para problemas mais interiores. Está de acordo?

R. R.— Quando se ama uma mulher quer-se-lhe prestar uma homenagem.

H. V. S. - Acha que se pode dizer que a Magnani o empurrava para fora de si e a Berman para dentro de si? Ou será completamente estúpida esta afirmação?

R. R. - Acho que isso diz um pouco como elas eram diferentes. A Anna, por exemplo, que morreu o mês passado, eu não a via há doze anos. Mas na altura em que se sentiu doente chamou-me para o pé dela e disse-me isto: «prohibe-me de morire». Eu lá fiquei até ao fim com a Sílvia d'Amico, que trabalha comigo. Não pude evitar que ela morresse, mas lá fiquei.

H. V. S. - E a Bergman? Era uma mulher para contemplar?

R. R. - Não,que ideia! Tinha um espantoso sentido de humor. Era timidíssima quando eu a conheci; tornou-se uma mulher corajosa e sólida. Eu, que a ajudei nessa transição paguei por isso o meu bocado.

H. V. S. - Acha que ela o chamaria também como a Anna?

R. R. - - Serei talvez eu a chamá-la...

A inocência de Allende

H. V. S. - Você esteve no Chile, mesmo antes da queda de Allende, não foi? Vai sair algum filme disso?

R. R. - Já lá tinha estado várias vezes. Eu agora passo grande parte do meu tempo passeando-me pelo Mundo. Tentando estar onde acontecem coisas, fazendo por compreendê-las. Vou à América Latina o mínimo de duas vezes por ano. Conheci o Allende, entre outros, de quem gostei muito, muito, muito. Era um homem de uma inocência maravilhosa.

H. V. S. - Se calhar foi isso que o perdeu. Não se deve ser inocente em política.

R. R. - Se os políticos não podem ter inocência, o mal é dos políticos. Mas se ouvisse a gravação dos últimos momentos de Allende, as mensagens que ia transmitindo, sabendo perfeitamente o que se preparava… são qualquer coisa de extraordinário. Não há palavra de ódio, de acusação. Transparece uma calma perfeitamente evangélica.

H. V. S. --Essas suas voltas são, portanto, e sobretudo, uma forma de lutar contra a tal ignorância. Simplesmente.

R. R.- Só na América Latina eu filmei nos últimos três anos, sem fazer filmes, só a acumular material, para reportório, meio milhão de metros de película.

H. V. S. - Portanto, você, por um lado, passeia-se pelo Mundo atento aos acontecimentos, por outro lado, corre as universidades, atento aos caminhos abertos pela investigação nos vários campos da ciência.

Inventar os meios para continuar

R. R. - Para o que me interessa actualmente, foi preciso eu inventar aparelhos ópticos novos

que me permitissem perscrutar o que está para além do visível. Por exemplo: estamos a ver aquele campo lá fora, aqueles edifícios, há você, há esta cadeira... são coisas que nós conhecemos e que são formadas por coisas que nós somos, mas não conhecemos. Ou seja, os objectos compõem-se de outro tipo de células, etc,

Assim, com os aparelhos que eu inventei, passa-se constantemente do visível a olho nu para o que está para além dele. Num ir e vir permanente.

H.V. S. – Teoricamente percebo, mas gostava que me explicasse na prática como é que faz.

R. R. -Tenho uma câmara que apanha um panorama e depois com um «zoom» vai detalhar as células da sua pele ou da casca daquela árvore. Entro dentro de si e regresso, volto a detalhar para trás e para a frente...

H. V. S. - Isso faz-se com um «zoom» muito potente, ou como? Tem que ver com a macrofotografia?

R. R. - Sim, passa-se da fotografia normal à macrofotografia e depois à microfotografia. Mas tudo ligado. É um sistema complicado de pequenas lentes adicionais que entra em jogo. Mas o problema principal que havia a resolver era o da iluminação. Consegui resolver a maior parte desses problemas e tenho hoje umas câmaras que correspondem perfeitamente aos meus desígnios.

H. V. S. Em que. é que você já as utilizou?

R. R. - Nestas coisas da ciência. Eu não faço investigação, trabalho sobre o conhecido. Começo pelo Universo, daí passo à entropia, depois daí ao nosso planeta e a seguir ao homem. Dele, ao que ele tem de mais típico que é o cérebro. Passo à célula, e depois às colónias de células. O cérebro humano é duplo. Há o cérebro de raiz animal, que é a parte onde sempre nos refugiamos: é por causa dela que bebemos, que nos drogamos, que dançamos de certa maneira: esta é a nossa raiz mais antiga onde nos sentimos mais seguros. Toda a parte cortical do nosso cérebro é a responsabilidade e dela tentamos sempre fugir. Isto é visível em política.

H. V. S. - E, portanto, no Salk o que é que vocês procuram exactamente?

A explosão demográfica a nova luz

R. R. - A imunologia, visto que o Salk é um Instituto de Imunologia, contra as patologias. Além disso, agora estou a fazer um filme sobre o problema da explosão demográfica no Mundo. A esse respeito há os que defendem a pílula, há os que defendem o aborto, há os que defendem a esterilização programada, mas eu não vou em nada disso. Todas essas coisas podem ter consequências imprevisíveis e no fundo são ape nas responsáveis por uma percentagem mínima (2,2 por cento) da explosão demográfica. Os noventa e sete vírgula tal por cento têm que ver com causas várias, entre as quais o número crescente de vidas que se salvam. Além disso a atitude do aumento da natalidade pode ter origens puramente racionais e ideológicas. Finalmente, a limitação da taxa de nascimentos acarretaria o envelhecimento que teria como consequência uma diminuição de agressividade, de élan vital.

H. V. S. E você propõe alguma solução?

R. R. - Eu não proponho nenhuma.

H. V. S.- Mas o problema de limitação dos nascimentos não é um problema meramente demográfico, mas sim um problema humano. As mulheres querem deixar de ser escravas dos filhos e os homens também.

R. R.- Mas isso é uma questão de organização social.

H. V. S. - Então e um laço humano que se cria não é uma responsabilidade?

R. R.- Eu acho exactamente que nós estamos no fim de uma civilização porque estamos na altura de rever tudo isso: os tipos de laços que se criam, por exemplo.

H. V. S. - Os laços criados trazem sempre problema. Não será antes de evitar criá-los?

R. R.- Não. Tudo depende de um ponto de vista diferente à partida que permita aproveitar toda a riqueza dos laços possíveis.

H. V. S. - Acho que você se está a refugiar num nível teórico que não tem em conta as realidades sociais e humanas.

R. R. Tenho seis filhos e nunca vi que houvesse problema.

H. V.S. - Agora talvez não, mas pode afirmar que nunca foram para si ocasião de não liberdade?

R. R. - No meu filme sobre demografia e natalidade vão aparecer todos os pontos de vista sobre o problema, até o seu.

H. V. S. - Obrigado, não esperava tanto.

R. R. — Olhe, agora vou participar num programa da televisão mexicana em que além de Jonas Salk, do psiquiatra austríaco Franz Adler e de mim, haverá um psicólogo e um sociólogo mexicanos e uma típica família proletária mexicana também. Tenho de lhe contar, a propósito, uma frase que me disse um camponês de Basílica:

«Quando eu era novo a frugalidade era uma virtude. Hoje já não é e o Mundo está perdido por causa disso». Este homem não conhecia Gandhi e disse por outras palavras o mesmo que ele afirmou: «Se nós soubermos limitar os nossos desejos, poderemos satisfazer todas as nossas necessidades».

Um projecto: o Messias

H.V.S. - Qual o seu projecto mais próximo? 

R. R. — Estou a trabalhar num «Messias». As pessoas nunca leram o Antigo Testamento, nem o Novo, como também não leram Marx. Interessava-me fazer ressaltar certos aspectos da vida do povo de Israel. Houve um tempo em que as tribos judaicas viviam num regime comunitário e patriarcal que não conhecia chefes. Confrontadas com outras civilizações e hierarquizadas tiveram que escolher chefes a que chamaram juízes, que serviam para dar conselhos, mas que não tinham propriamente poder. Quando Samuel era juiz, o povo pediu para ter um rei, Samuel conversou com Iavé e Ele respondeu: «se quiserem podem tê-lo, mas que saibam que as suas filhas irão para cozinheiras do rei, que os seus filhos irão para soldados do rei; que as suas colheitas serão entregues ao rei». E as tribos quiseram o rei. Assim houve reis, através de lutas e guerras, de que surgiram os profetas, cuja ideia central é a espera do Messias. Daquele por quem a justiça virá. Esta ideia de justiça encarna-se sob as mais espantosas formas: do anjo exterminador, do homem-todo-poderoso, quando afinal o Messias surgiu pobre e humilde. É este ponto de vista que me interessa no filme que agora estou a fazer: uma meditação sobre o poder.

H. V. S. - Portanto, o que você quer fazer ressaltar é que o povo esperava uma coisa, que saiu outra e porquê.

R. R. – Pois. Que a única virtude que conta é a da humildade.

H. V. S. - Ora aí está, as «Fioretti» outra vez! Estas coisas que você faz, fá-las por si ou pelos outros?

R. R. - Sobretudo por mim, porque sou um optimista e tenho fé nos homens, preciso de os pôr a dialogar uns com os outros. Quando se não tem fé nos homens, então é diferente, é preciso dominá-los. Metternich dizia que com as baionetas se pode fazer tudo, excepto sentar-se em cima. Aqui há tempos, alguém, em tom de insulto, me disse: «mas afinal você é um optimista». E eu, envergonhado, tive de concordar que sim, que era.

H.V.S. - Você definir-se-ia como? Como um asceta que se sacrifica pelos outros ou, como alguém que vive como quer e gosta?

R. R. - Eu só quero divertir-me e divertem-me as explorações que faço.

H. V. S. - Mas esse cérebro que você tenta desenvolver, não será você quem o goza, mas os seus filhos.

R. R. Pois é, mas eu vou-me divertindo e gosto da ideia de que os meus filhos aproveitem.

H. V. S. - Quantos filhos tem você?

R. R.- Tenho seis. O mais velho, romano, tem agora 32 anos e só existe para me contestar. Damo-nos muito bem. Duas gémeas italo-suecas, filhas da Ingrid; três italo-indianos, filhos da minha última mulher.

SILVIA D'AMICO — Basta! Temos o carro à espera.

Helena Vaz da Silva
Fotos de M. Carmo Galvão Teles e Luís Brás Teixeira
Expresso, 24 novembro 1973

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