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Balanço da ala liberal

Artigo da autoria de Helena Vaz da Silva e José Manuel Teixeira

Publicação · 1973-05-05
Expresso

O DEPUTADO Francisco Pinto Balsemão, no último dia de trabalhos da Assembleia Nacional, despediu-se com um discurso que consideramos importante como cômputo de quatro anos de legislatura para uma chamada ala liberal. Acontece que Pinto Balsemão - além de deputado - é director do EXPRESSO. Se é melindroso a um jornal falar do seu director como figura política (Jean-Jacques Servan Schreiber demitiu-se de director de «L'Express» quando assumiu a liderança do Partido Radical em França), não podíamos ignorar esse documento sob pena de faltarmos a um compromisso com os nossos leitores a quem temos obrigação de informar de quanto achamos ser importante. Assim, dois redactores do EXPRESSO pegaram no texto de Francisco Balsemão e comentam-no: 

EM 1969 - já se disse e redisse - houve pessoas que acreditaram na «Primavera» e assim entraram na Assembleia Nacional. Não os unia uma ideologia, nem um programa de acção comum. Nem sabiam nessa altura que alguém («O Século», por sinal) lhes viria a chamar ala e liberal. 

Liberais eram-no, cada um a seu modo e a seu grau. Ala, fizeram-nos as circunstâncias, pois que à custa de elevarem as suas vozes contra os imobilismos vários, começaram a aparecer como grupo aos olhos dos imobilistas, (na Assembleia só havia os imobilistas e eles; os mobilistas estavam de fora ou dentro, às vezes). Olhados, pois, como grupo pelos de fora, eles próprios tomaram consciência de que podiam sê-lo.  

Assim agiram com a coesão que lhes permitia a «quase (nenhuma) organização, vivendo na maior parte das ocasiões de um condenável espírito de improvisação», em momentos como o da discussão da Lei de Imprensa, da Liberdade Religiosa, da Revisão da Constituição.  Se isso já não foi verdade quando se discutiu a Reforma do Ensino, foi porque chegara o fim dos quatro anos e com ele um grande cansaço.  

Sá Carneiro e Miller Guerra renunciaram - por cansaço, por desânimo - aos mandatos. Francisco Balsemão, ao despedir-se da Assembleia com um discurso de que a seguir damos extractos, diz que o faz acreditando que foi útil a sua presença, embora esses quatro anos não o tenham «identificado a um sistema em que não acredita». Útil ao Governo, porque Ihe emprestou uma nova imagem de marca; útil ao País porque lhe abriu o caminho para uma terceira via - nem imobilista, nem revolucionária.  

Crê Francisco Balsemão que a admissão de partidos e a liberdade de informação serão condições necessárias e (quase) suficientes para essa terceira alternativa. 

Posto isto. achamos ser altura de levantar a questão: que nos trouxe a ala liberal? 

Uma análise desapaixonada do que foi a acção de deputados como Pinto Leite. Sá Carneiro, Miller Guerra e Pinto Balsemão pesará numa tomada de posição nas próximas eleições – mesmo tendo em conta que em 73 já não há motivos para acreditar em promessas feitas em 69, quando o então líder da União Nacional, Melo e Castro, convidou determinadas pessoas a integrarem listas da U. N. 

Francisco Balsemão crê, pois, que houve resultados positivos para o Governo e para o País.  

Para o Governo: porque «no plano interno, era preciso alimentar o sentimento (de esperança para uns, de receio para outros) de que a doutrina a que, entretanto, se veio a chamar do Estado Social, era diferente da do Estado Estado Novo, que o regime não seria classificável como pós-salazarista, porque uma época nova, actualizada começava. Para além das garantias de continuidade, o acento tónico, nas palavras e nos actos, era posto na evolução, na renovação de métodos, de nomes, de objectivos secundários». 

Nesta fase, e mesmo hoje, os deputados denominados liberais foram um útil instrumento, uma excelente demonstração de que o pluralismo, dentro de limites muito hem definidos, era aceitável, senão desejado. Por outro lado, determinados projectos governamentais, receberam dos «liberais» um apoio que constituiu uma boa ajuda na argumentação contra as forças reaccionárias. Estou a pensar no que se passou, nesta sala, nas comissões e nos bastidores, por exemplo, a propósito da política ultramarina (revisão constitucional e Lei Orgânica do Ultramar), do acordo com o Mercado Comum. 

Lembre-se também como as recentes renúncias de Sá Carneiro e Miller Guerra provocaram a autonomização e o distanciamento das forças reaccionárias. Note-se ainda que os ataques de parte da Imprensa de esquerda ou de extrema direita, clandestina ou não, ao grupo chamado liberal foram igualmente úteis ao Governo, na medida em que lhe permitiram acentuar o isolamento desse grupo do contexto clássico das oposições e, assim, continuar a dividir para reinar. 

Também no plano externo, a ala parlamentar apodada de liberal serviu - e, sem dúvida, serve ainda - para projectar no estrangeiro uma intenção governamental de aproximação do modelo democrático europeu. A nossa simples existência, o facto de nunca termos sido perseguidos, no campo pessoal ou profissional, pelas nossas actividades políticas (o que, diga-se de passagem, é, pelo menos no meu caso, absolutamente verdade), a possibilidade de, com regularidade, discordarmos das teses do Governo, demonstrariam (demonstrarão) ao mundo uma incipiente, mas, na maior parte dos países, benvinda, evolução da situação política portuguesa. 

Na forma e manutenção de tal convicção, a ala dita liberal desempenhou e continua, embora muito teoricamente, a desempenhar - um papel importante. Abrimos portas fechadas há anos, facilitámos diálogos até aí considerados de difícil concretização, conseguimos contactos rotulados de irrealizáveis». 

Para o País: ou sobretudo para o País - foi positiva a passagem dos deputados liberais pela Assembleia Nacional.  

Concordamos com o deputado Francisco Balsemão, quando afirma: «Lográmos trazer à discussão pública diversos problemas que estavam há anos, propositada ou desleixadamente enterrados ou disfarçados, dos direitos e liberdades individuais ao cooperativismo, da organização judiciária à integração europeia, da reforma do ensino ao ordenamento do território». 

Diríamos nós: diversos problemas foram de facto trazidos à discussão pública ou semi-pública (visto que alguns, só os leitores do «Diário das Sessões» os leram). Desses, quais os que tiveram uma resolução por parte do Governo. na linha proposta pelos «liberais»? Mais a sério, só a Reforma do Ensino, agora já quase como que a aparecer como iniciativa própria do Governo, e a Lei Orgânica do Ultramar. 

Cidadãos influentes, regra geral não extremistas, que até aqui não se sentiam envolvidos pelo que se passava nos órgãos de soberania do seu país, viram-se forçados a participar, a apoiar ou rejeitar, a aplaudir ou criticar. Mulheres e homens, novos e velhos, concluíram que não era mais tempo de se colocarem ao lado do que se passava, que o alheamento ou a indiferença só conduziam à concentração do poder nas mãos de uns poucos, que o direito de admissão não podia continuar reservado. Surgiu assim o escândalo inaceitável de uma nova força política, não enquadrável no eterno esquema situação oposição.  

Escândalo? Talvez. Inaceitável, parece-nos que não. Se o fosse, não teria sido.  

O papel dos liberais foi um que o «status quo», a Ia limite, podia suportar. As consequências a longo prazo desse papel serão talvez incontroláveis. Como diz Balsemão num passo do seu discurso, «nem sempre o que se faz se deve medir pelo que de imediato e prático provoca. As correntes profundas da opinião pública são independentes das actuações do dia-a-dia». 

«Esta terceira força tende a crescer, a assentar e terá, por via parlamentar ou por outra via, a sua palavra a dizer nos anos que se seguem». 

Esta «outra via» tem que se Ihe diga. Se não é a parlamentar, só poderá ser a da tomada de poder político. Enquanto não houver partido, irão alguns deputados da X Legislatura engrossar as hostes governamentais? Ou esperarão eles, nas SEDES ou suas imediações, estudando e meditando, pelo dia em que se puderem definir como políticos a título inteiro sem A. N. P. de permeio? 

A essa terceira força alia Francisco Balsemão a ideia de partidos políticos: «a expressão partidos políticos continua a provocar o pânico e a indignação em alguns meios considerados representativos da sociedade portuguesa». 

Mas o associativismo político, a presença de partidas na vida portuguesa e na Assembleia não seriam muito mais esclarecedores da realidade nacional, não desmistificariam tantos tabus nocivos, tantas situações injustas, não provocariam a guerra à corrupção, não impediriam que a riqueza continue a circular em redor de 200 ou 300 famílias, não obrigariam os oportunistas e os comodistas a, de uma vez para sempre, se pronunciarem de acordo com o que pensam e não segundo o que lhes convém no momento ou menos o incomoda? 

Admitimos que Pinto Balsemão diga ter sido positivo o saldo da presença dos deputados liberais na A. N. P. Admitimos que Pinto Balsemão afirme que o Governo e o País estiveram a lucrar com a integração de certas pessoas na A. N.  

Mas quem vai aceitar ser integrado pela A. N. P. na próxima campanha eleitoral? Só quem não acredite em promessas. 

Encaramos uma solução possível, no entanto: a eleição não por listas, mas por percentagens de votos nas urnas. A A. N. P. ficaria sempre a ganhar nas suas maiorias votativas e a oposição conseguiria entrar - embora minoritariamente – na Assembleia. 

Um render da guarda proveitoso para todos - Governo, oposição e até para o País que ficaria alertado sobre certos problemas que, de outra forma, não chegariam ao seu conhecimento. 

Uma outra CEUD em 1973, ou uma CDE moderada, por exemplo.  

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