Para um turismo renovado
"Mais importante do que ter mais turistas é ter melhores turistas: que fiquem mais tempo, que gastem mais, e que queiram voltar."
Intervenção de Helena Vaz da Silva no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da UE
Foi a Europa que inventou o turismo tal como hoje o conhecemos na sua face de grupos organizados com destino definido. É a Europa que terá de inventar agora, cerca de 60 anos passados, o novo turismo que há-de mantê-la na liderança mundial que, embora a custo, ainda é a sua, tanto para o turismo que entra como para o turismo que sai.
O próximo Conselho de Ministros do Turismo que terá lugar em Maio em Vilamoura – honra seja à Presidência portuguesa, já que muitas presidências não têm organizado nenhum – tratará o tema da Europa como destino turístico, em relação com o Euro.
De facto está em curso a disputa à liderança da Europa como mercado receptor de turistas. E está sobretudo em curso uma mudança rápida do gosto e da motivação dos turistas. Estes procuram cada vez em maior número as chamadas férias activas, as férias educativas ou as férias culturais e procuram também programas individualizados ou de descoberta, em desfavor do sol e praia e dos pacotes excursionistas. Programas para aprender a língua, descobrir o património, gozar correctamente a natureza, percorrer rotas de vinho, gastronómicas ou culturais e frequentar festivais começam a aparecer nas listas de preferências e explicam a proliferação recente de agências de pequena dimensão e vocação especializada e os salões de turismo cultural.
Por que estão o património e a cultura a crescer em importância na oferta turística? Por que surgem por todo o lado itinerários temáticos? Por que se multiplicam as redes de contacto entre regiões interessadas em promover a sua cultura como imagem de marca?
Haverá para isso várias razões. Por um lado, os políticos tomam consciência de que a cultura viva e o património são fortemente geradoras de novos empregos e instrumento de desenvolvimento. Por outro lado os operadores turísticos vêem-se confrontados com a necessidade de renovar os seus produtos e de responder aos gostos emergentes. Enfim, do lado dos cidadãos, potenciais viajantes, há sem dúvida uma nova consciência das questões de saúde e das questões ambientais que os leva a escolher alternativas à praia, ao mesmo tempo que a crescente mobilidade dos jovens e uma ânsia de melhorar a própria formação, conjugada com o número cada vez maior de reformados activos, faz surgir novas clientelas com novas exigências.
Portugal tem um enorme potencial para esse turismo renovado que as tendências do mercado já prenunciam. Não só porque ocupa, nas estatísticas mundiais, um honroso lugar (15º lugar se não me engano) como destino turístico, com os seus mais de 11 milhões de turistas, mas também porque a evolução recente tem sido sempre a crescer, quer em receitas, quer em visitantes – e, como em 1998 (últimas estatísticas publicadas) a percentagem de receitas subiu mais do que a do número de visitantes – respectivamente 18% e 9.9% - quer dizer que a qualidade dos nossos turistas parece estar a melhorar. Há também um aumento da hotelaria não tradicional (11,5%) e a região de Lisboa e Vale do Tejo sobe, começando a disputar espaço à liderança do Algarve e da Madeira. E depois a natureza é bela, o clima suave, a história antiga, as pessoas afáveis – como já se sabe mas nunca é demais repetir.
Mas se há sinais que permitem o optimismo, outros não tanto.
Começando pelos bons sinais:
É verdade que sobe o número de casas em turismo de ano para ano, é verdade que o turismo rural revela taxas de ocupação quase ao longo dos doze meses, é verdade que as pousadas se multiplicam, com média crescente de qualidade e têm das mais altas taxas de ocupação, é verdade que várias iniciativas regionais e locais lançam itinerários temáticos, é verdade que a Direcção Regional de Turismo apoia planos de recuperação de aldeias históricas, é verdade que há redes europeias de turismo de iniciativa e de liderança portuguesa – estou a lembrar-me do Consórcio Europa Traditiones ou da Rede Europeia das Cidades dos Descobrimentos.
Mas também é verdade que, conforme mostram as estatísticas, na hotelaria ainda praticamos um turismo ultra conservador, com um número muito baixo de unidades e um número alto de quartos por unidade, contrariando a tendência noutros países europeus de preferir pequenas unidades de qualidade.
Também a baixa qualificação dos trabalhadores de hotelaria tem merecido pouca atenção em Portugal. É, por isso, de saudar a iniciativa recentemente anunciada pelo Secretário de Estado do Turismo de aproveitar a baixa estação para reciclar o pessoal sazonal e integrá-lo plenamente na força de trabalho do sector. É, de facto, da qualidade do serviço e do acolhimento que depende a qualificação do nosso turismo. Mais importante do que ter mais turistas é ter melhores turistas: que fiquem mais tempo, que gastem mais, e que queiram voltar.
Um país pode considerar-se maduro em matéria de turismo quando conseguir interiorizar estes princípios elementares:
- de que é possível e urgente melhorar a qualidade do turismo fazendo da cultura e do ambiente, através de uma política integrada, os melhores amigos da sua qualificação; subindo a qualidade média da oferta e não confundindo qualidade com luxo; diversificando a oferta para atingir diferentes públicos e diferentes regiões do país; aproveitando o turismo para montra da criação contemporânea nacional.
- de que os projectos de turismo têm de ter em conta a identidade geográfica e cultural da região em que se implantam e os interesses da população local.
A agenda do próximo Forum sobre estatísticas de Turismo em Glasgow, no próximo mês de Junho é já de si uma prova de que as linhas de força das políticas de turismo estão a mudar. Os seus pontos fortes vão ser o turismo sustentável, o turismo local, as pequenas empresas, o perfil e o comportamento do turista.
O turismo tem um enorme peso económico na Europa, sendo responsável por 9 milhões de empregos e representando nalguns países mais de 20% da sua economia, para não falar dos 75% de algumas regiões insulares. Para contrariar a crescente procura de destinos extra-europeus pelos turistas de todo o mundo, a única coisa a fazer é afirmar muito claramente um modelo próprio do turismo europeu, baseado na qualidade, na personalização da oferta e na segurança do turista.
Para formular essa nova oferta é indispensável que autoridades públicas e operadores privados estejam atentos à mudança na sociedade. Em 20 anos, o consumo da UE subiu 40%, sendo Portugal e a Irlanda os dois vencedores nessa escala. Os consumidores europeus estão a evoluir: gastam menos em artigos domésticos e mais em actividades recreativas, de entretenimento, cultura e educação.
Juntando os dados sobre os hábitos de consumo aos dados sobre turismo educacional, turismo cultural e eco-turismo, mais os dados sobre turismo de negócios, turismo de desporto e turismo religioso, atingimos um padrão que nos mostra como estamos longe do predomínio absoluto dos pacotes ”sol e mar”. Longe mesmo da clássica divisão entre turismo de massas, turismo de elites, turismo alternativo. O turismo alternativo parece ter-se fragmentado num caleidoscópio de turismos que vão adquirindo importância de ano para ano.
As políticas nacionais e regionais de turismo começam a adoptar os itinerários culturais mas há ainda um longo caminho a percorrer entre o belo papel couché produzido e a passagem à prática do seu conteúdo. Os itinerários são uma forma de pôr em destaque a diversidade de oferta existente nas regiões, em torno de um tema condutor, o que contribuirá para o descongestionamento das áreas urbanas e para o desenvolvimento das regiões interiores. Desenvolvidos nas décadas de 80 e 90 pelo Conselho da Europa, pela UNESCO, e agora por muitas organizações na sua esteira os Itinerários e as Rotas Culturais permitem apreciar o património na sua riqueza - monumentos, casas de habitação, tipo de urbanização, culturas, natureza, festas, romarias, música, cozinha, tradições - inserindo as realidades locais num contexto alargado e aproveitando personagens e acontecimentos históricos ou grandes temas culturais. E são ainda ocasião para lançar marcas regionais que acentuem a identidade da região perante quem a visita. Muito se tem feito por cá nos últimos anos. Mas tanto a informação, a nível interno e externo, como a aplicação no terreno deixam ainda a desejar.
Para atingir os cidadãos nacionais, de preferência a massivas campanhas de imagem na televisão, escolha-se o boca a boca, a irrigação do terreno; apoiem-se as iniciativas públicas naquelas instituições existentes que já trabalham na área, encomendando-lhes serviços.
Para falar para fora de fronteiras, de preferência a caríssimas campanhas sem rosto, convidem-se “embaixadores” culturais de carne e osso a ir falar do país a audiências prontas para ouvi-los; frequentem-se as feiras e salões especializados de turismo cultural – onde raramente (ou nunca) se vê uma presença portuguesa; lance-se de modo sistemático informação turística em certames não turísticos, como são as bienais do livro e de arte ou os grandes festivais internacionais.
A renovação do turismo – para que o CNC tem procurado empenhadamente contribuir desde o início dos anos 80 com iniciativas diversas – passa por um novo conceito de turismo, como se tentou definir acima, por uma parceria público-privada – Governo/empresas, mas também Governo/organizações culturais, tanto na formação de recursos humanos como na aplicação das políticas – e por uma integração real e persistente das políticas de turismo, cultura e ambiente, sempre em articulação com a política externa. Se estas parecem evidências que quase me envergonho de repetir, a verdade é que elas não passaram à prática – e por isso me permito repeti-las perante esta distinta audiência e no contexto de uma presidência que nos obriga a ter mais consciência de que somos parte de um bloco chamado Europa onde estes conceitos começam, por puro realismo, a ser adoptados, tendo em vista o futuro do planeta em termos ambientais e o futuro da Europa como destino turístico.
Participei recentemente num forum em Roma sobre a vertente económica do património cultural, organizado pelo ICCROM. Todos os conceitos aí desenvolvidos por numerosos especialistas – da OCDE, do Banco Mundial, da UNESCO, de universidades americanas, canadianas e europeias – iam bater no mesmo: o turismo só tem futuro se for sustentável e se tiver em conta o contexto social e cultural em que se desenvolve. Conceitos como: desenvolvimento integrado, emprego local, elevação do nível da qualidade individual de vida das populações residentes, aprofundamento das identidades culturais são dimensões indissociáveis do desenvolvimento turístico no futuro.
A esse forum de Roma seguiu-se uma Conferência de Alto Nível do Banco Mundial em Florença com o significativo título Culture Counts. Aí se disse e repetiu que cultura é indissociável de desenvolvimento e que turismo é indissociável de cultura e ambiente. Descobri até que passou a haver uma nova especialidade, a dos “economistas culturais” que, transferindo a metodologia aplicada nos cálculos de impactos ambientais, passaram a calcular os “impactos culturais” dos projectos de desenvolvimento económico.
Acredito que Portugal tem boas razões e excelentes condições para se colocar na linha da frente de uma política inovadora que lance as bases para um turismo renovado. Ele vem aí. Mais vale estarmos na carruagem da frente do que irmos a reboque, sobretudo com um vizinho poderoso que já conseguiu este ano ocupar o segundo lugar dos países mais visitados da Europa.
Lembrarei, para terminar, sumariamente o que foi a actividade CNC no passado para me fixar no que agora tentamos desenvolver.
Apenas evocarei, para que conste, os passeios, viagens, cursos de formação de guias, encontros internacionais, edições e produção de itinerários, sem entrar em pormenores, o que gostosamente farei com quem o desejar.
O CNC começou em 1980 por organizar visitas pelo país que eram acompanhadas de vários especialistas para que se fizesse uma leitura múltipla das regiões visitadas: história, arquitectura, etnografia, paisagem. Fizeram-se centenas de visitas e produziram-se dezenas de publicações com essa perspectiva cruzada a que já então chamámos turismo cultural. Esses itinerários pioneiros feitos com espírito de aventura e carolice de gente que conhecia o país como os seus dedos existem, e poderiam ser base para futuras publicações.
Avançou-se seguidamente para ciclos de viagens, alargando o conceito à procura de memórias – visíveis e invisíveis – da presença portuguesa no mundo. Entre 85 e 93 realizaram-se viagens à Índia, China e Macau, Malásia, Tailândia, Singapura, Marrocos, Brasil e Japão, tendo-se publicado “diários de viagem” e detalhadíssimos itinerários das memórias portuguesas no mundo, além da produção de filmes para a RTP. Encontra-se a sua relação na página Internet do CNC (A dado momento sentiu-se que era uma prioridade o diálogo entre os sectores do turismo, do ambiente e da cultura). Durante três anos realizaram-se os encontros internacionais. Veio depois a formação de guias especializados. Com o apoio do IEFP, organizaram-se cursos de especialização de 2 anos para guias turísticos, a que se seguiram cursos curtos para guias da Lisboa 94 com base em itinerários urbanos concebidos pelo CNC. E também cursos de sensibilização para técnicos das autarquias.
Seguiu-se a produção entre 89 e 92 de Itinerários Culturais, depois publicados pelo ICEP: Na Rota do Infante (em português e inglês), Na Rota dos Judeus (em 7 línguas) e ainda os Lisbon Walks – percursos urbanos para estrangeiros, e depois os Guias para ANA-Aeroportos de Portugal – que ainda continuamos a produzir na parte que respeita aos itinerários culturais.
Em 1990 propôs-se à Comissão dos Descobrimentos um projecto de Itinerário Nacional Urbano sobre os Descobrimentos, com rotas pedestres em várias cidades e ligação por estradas, tudo com placas explicativas. Foi terminado e entregue mas ficou na gaveta por mal explicadas barreiras burocráticas.
Em 1988 criou-se o Patrimatic – Banco de Dados multimedia sobre Património – que é hoje um núcleo muito vivo com mais de uma dezena de estagiários em pós graduação – e por vezes alguns estrangeiros – a completar e actualizar a extensíssima informação em texto e imagem sobre Portugal, concelho por concelho.
Em 1994 lançámo-nos na produção do primeiro CD-ROM sobre cidades históricas de Portugal em versão portuguesa e inglesa. Na altura contavam-se pelos dedos as produções multimedia nacionais.
Quis o destino que a Presidente do CNC desempenhasse uns anos funções na UNESCO, no Conselho da Europa e depois na União Europeia, o que foi ocasião para canalizar para o CNC o muito que foi recolhendo junto dos especialistas e operadores que contactou.
Por tudo isto, não é de espantar que a valência turismo cultural tenha sido desde sempre para o CNC uma segunda pele.
Presentemente há dois projectos que nos ocupam e preocupam: os Caminhos de Fátima e Lisboa-Porto, ponte cultural.
Os Caminhos de Fátima são uma rede de caminhos pedestres que recuperam as rotas tradicionais dos peregrinos e que se destinam a permitir percorrer o país em contacto com a natureza e longe do ruído e dos perigos das estradas. Destinam-se não apenas a peregrinos religiosos mas também a outros passeantes.
O projecto consiste em definir os caminhos na carta geográfica, fazer o levantamento das obras a fazer, encontrar os meios para as realizar, sinalizar os percursos e criar zonas de descanso ao longo deles. Definiram-se 4 caminhos – do Tejo, do Norte, do Leste e do Litoral – que estarão prontos até 2003, prevendo-se já a publicação de um guia para cada caminho. Em Maio será inaugurado o Caminho do Tejo e lançado o respectivo guia que já está no prelo.
A ponte cultural Lisboa Porto tem por objectivo criar relações habituais entre as comunidades artísticas e culturais das duas cidades que parece viverem de costas voltadas. Ao longo do ano 2000 grupos de uma cidade serão convidados a visitar a outra para participar em espectáculos, exposições, percursos urbanos, debates e folias, aproveitando-se para revelar aos lisboetas os segredos que esconde Porto 2001 e para preparar novos programas e percursos que possam servir para o futuro, para além de dar azo a novos afectos, o que não é de somenos.
Vai longa a missiva e, se não é mentira dizer que saíu longa por falta de tempo para a fazer mais breve, é verdade que, tivera eu tido tempo, talvez a não tivesse feito diferente. Porque, citando Sacha Guitry: “dizem que eu me repito. É verdade. Mas hei-de repetir-me até estar certo de que alguém me entendeu”.
Helena Vaz da Silva