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Rossellini morreu

Artigo na Revista do Expresso sobre Roberto Rosselini a propósito da sua morte em 1977

Publicação · 1977-06-08
Expresso

"DA MINHA juventude me ficou o desejo de estar sempre disponível, e aderir à grande aventura da vida, que é a mais importante de todas. Porque não há dúvida de que o único tempo real é o futuro", disse-me Roberto Rossellini quando há tempos passou por Lisboa.

Tinha 70 anos e acaba de morrer com um ataque de coração, lê-se nos jornais.

Custou-me a acreditar. E percebi então, melhor do que na altura em que o encontrei, que Rosselini é daqueles homens que joga mal com a ideia da morte, tal como correntemente a concebemos.

Ele dizia: "Aqui há tempos alguém, em tom de insulto, me atirou "mas afinal você é um optimista". E eu, envergonhado, tive que concordar que sim, que era".

Um optimista porque acreditava no homem, porque acreditava em desenvolver nele as potencialidades ainda não reveladas.

De facto, aquilo a que hoje chamamos homem é, parece-me, apenas um rascunho daquilo a que amanhã chamaremos homem.

Quando, à racionalidade-rei, se acrescentar a intuição-rainha, quando à competição-regra se substituir a cooperação-espírito, quando os valores de grupo tomarem o lugar dos valores individuais, -teremos então matéria--prima para a revolução sonhada, tantas vezes ensaiada e tantas vezes, por isso mesmo, frustrada.

Isto reconhecia alguém quando, no outro dia, me dizia, falando de diversas experiências comunitárias que floresceram em Portugal nos últimos três anos: "falharam quase todas por problemas humanos, por desentendimentos individuais entre os membros do grupo".

É difícil, com homens tortos, fazer revoluções direitas, não há dúvida. E também já não estamos em tempo de nos satisfazermos com aparências de revolução.

Essa ideia de que era preciso levar o -homem mais longe no conhecimento do mundo que o rodeia e de si - próprio, a começar pelo funcionamento do seu cérebro, levou Rosselini a largar o cinema, onde era mestre incontestado, e. a dedicar-se à produção de séries para a televisão onde procurou retraçar o percurso do Universo, enriquecido pelos aspectos múltiplos e fascinantes que as modernas ciências, da biologia à química, da cosmologia à matemática, fornecem. -Ao mesmo tempo, retraçava também a história do pensamento, procurando entender a uma luz nova o que Pascal, Sócrates, Santo Agostinho, Descartes, Jesus e Karl Marx têm para nos dizer.

"A minha luta consiste em sair da ignorância", disse.

E por isso tinha-se posto a passear pelo mundo, "tentando estar onde acontecem as coisas, fazendo por compreendê-las", como afirmava. De Allende, de quem ficou muito amigo, recordava "era um homem de uma inocência maravilhosa". E à minha observação de jornalista "se calhar - foi isso que o perdeu, não se deve ser inocente em política", ele respondeu -"se os políticos não podem ser inocentes, o mal é da política".

Morreu com dois projectos em mãos: o filme sobre Karl Marx que, no seu entender, completava o "Messias", terminado em 75, e um outro que seria "Trabalhar para a humanidade". Um seu livro recentemente publicado chama-se, por seu lado, "Um espírito livre não deve confundir-se com um escravo".

Eis a "onda" em que se encontrava um homem, setenta anos passados de uma vida, e m que lutar e amar não foram só palavras ocas. A luta foi a resistência; o amor foram, pelo menos, as três mulheres com quem intensamente viveu e trabalhou e os seis filhos que delas teve.

Recordo aqui parte do diálogo que tivémos sobre elas: "Acha que se pode dizer que a Magnani o empurrava para fora de si e a Bergman para dentro de si? perguntei.

"Isso diz um pouco como elas eram diferentes. À Anna, que morreu no mês passado, eu não a via há doze anos. Mas quando se sentiu doente chamou-me para ao pé dela e disse-me: "proíbe-me de morrer". Eu lá fiquei até ao fim... Não pude evitar que morresse, mas lá fiquei...".

"E a Bergman... acha que ela o chamaria também, como a Anna?"

"Serei talvez eu a chamá-la", respondeu então.

E eis como a morte o apanha assim, nesta fase do percurso. Morte que obviamente não pode ser fim, mas apenas transformação: transformação que as nossas memórias farão do que dele nos ficou, transformação que as energias da terra farão do que dele lhes ficou. Com Roberto Rossellini terão que se haver ainda muitas gerações vindouras, disso tenho a certeza.

Helena Vaz da Silva

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