Werner Herzog em Lisboa
"Aguirre", uma ponta do círculo Por Helena Vaz da Silva
FOI A estreia de Aguirre – que a versão portuguesa despromoveu de «flagelo de Deus» para «aventureiro» - no Satélite. Patrocinado pelo Instituto Alemão a quem se deve, valha a verdade, uma das mais esclarecidas políticas culturais de que actualmente temos notícia entre nós, contava com a presença de Werner Herzog, o realizador.
O público que. dentro da sala, depois da projecção, se afastou intimidado, não correspondendo ao convite de Curt Mayer-Clason para que dialogasse com o autor, fê-lo cá fora, no corredor, como quem não queria a coisa.
Ainda com a lembrança da frustração que aquele tipo de diálogo bem-intencionado sempre deixa, perguntei-lhe, a começar a nossa conversa, se tinha gostado daquela troca de impressões. Que não muito, que, se pudesse, não falava.
«Mas como isto faz parte de fazer filmes e a minha vida é fazer filmes (não sei fazer mais nada), acabo por gostar». Por isso ali estávamos. Porque Herzog decidira que era preciso aturar com bom espírito gente como eu.
Produtor, argumentista, realizador e mais
Desde os 14 anos que ele sabia exactamente o filme que queria fazer. Levou vários anos a ver abrirem-se as portas às suas propostas escritas de argumentos e a ver as mesmas fecharem-se quando ele se apresentava, recém-saído dos calções. Aí desistiu e pôs-se a trabalhar à noite, enquanto, de dia, fazia o liceu. Em dois anos ganhou o custo de produção do seu primeiro filme: Herakles. Nunca mais deixou de se auto-produzir, nem concebe outra maneira de fazer filmes. Escreve os argumentos, trata de todo o aspecto organizativo (que, no seu caso particular, com filmagens no Sahara e expedições às montanhas do Peru, não é de pouca monta), dirige não só as filmagens, mas - quase - as almas dos actores e dos técnicos.
- «Para conseguir os filmes que quero, fui formando aqueles que trabalham comigo. O operador de Aguirre, por exemplo colaborou no meu primeiro filme grande.»
Acelerar o ritmo
São um grupo, fazer aqueles filmes é um modo de vida.
- «Na verdade. eu não tenho a vida privada. Toda a minha vida é pôr em obra aquilo que tenho na cabeça, que sei que quero fazer. Tenho de acelerar constantemente o ritmo porque não consigo dar vazão ao que vai cá dentro.»
Um grupo que assume os mesmos riscos, as mesmas dificuldades.
- «De uma vez, foi nos Camarões. Tomaram-nos por uns perigosos mercenários procurados pela Polícia e prenderam-nos. Numa cela de meia dúzia de metros quadrados em que mal se respirava.» Mostrou-nos umas cicatrizes a lembrar-lhe esses dias.
- «De outra vez foi a história do roubo dos macacos. Pedi aos índios da equipa que fossem a selva apanhar macacos. Trouxeram-me quatrocentos, que metemos numa jaula. No dia das filmagens, vou por eles e tinham desaparecido; revendidos pelos índios a um americano que os tinha já embarcado para um jardim zoológico. Arranquei num barco a motor até à cidade, daí num jeep da polícia, que encontrámos, até ao aeroporto, atravessámos a pista a apitar e apresentámo-nos no avião dizendo que éramos autoridades sanitárias e exigíamos ver os papéis de vacinação dos bichos. Discussão daqui discussão dali, acabaram por desembarcar os macacos para uma camioneta para onde saltámos e fugimos. São os que se vêem na última sequência de Aguirre.»
«E com o actor-Aguirre também passei um mau bocado. A certa altura recusou-se a trabalhar se eu não lhe pagasse. Tive de filmar algumas partes com a máquina numa mão e a pistola na outra.»
Golpes de azar e golpes de génio
Com os índios - que ele foi buscar a uma cooperativa-piloto no Peru - também houve os seus problemas. Têm um ritmo diferente. Mas com os «colóquios matinais» que Herzog iniciou, em que lhes explicava na língua deles o que ia ser o dia, aquilo encarreirou.
O lado material teve igualmente os seus golpes de azar e os seus golpes de génio. A cheia que aparece no filme aconteceu mesmo. De noite, desapareceu o acampamento e tiveram de viver uns tempos numa aldeia flutuante, rio abaixo. Rio abaixo ia também o almoço de toda a equipa: ideia de Herzog. Quando chegavam ao local onde iriam comer, comunicavam por «walky-talky» com os seis cozinheiros que enviavam, por via aquática, as rações prontamente preparadas.
Os meus filmes são um círculo
Mesmo sem conhecer os outros filmes, vendo Aguirre pressente-se uma obsessão de certos temas que imaginamos deverão estar presentes em outros filmes seus.
- «Sim, não sei se poderei explicar isso - porque eu não faço os meus filmes com a cabeça, faço-os com os joelhos, os braços, o peito - mas de facto reconheço a permanência de certos temas: os círculos, a água, os animais e sempre um certo tipo de personagem solitário que desafia tudo e todos. Aguirre é muito próximo do Stroszek de Sinais de Vida. Eu não lhe dou razão, como se vê pelo fim, mas confesso o meu fascínio por Aguirre. Os meus filmes são sempre um círculo, uma não-saída, um grito.»
Mas de filme para filme não haverá uma abertura no círculo, perguntamos, um caminhar ou um entrever uma saída.
- «Creio que «Terra de Silêncio e de Escuridão» é a minha única obra onde há esperança. Já fiz Aguirre depois desse.»
Um filme tão cheio de referências sociais e políticas como Aguirre parece corresponder a uma ideia. Herzog insiste que não tem ideias.
- «Um filme surge-me assim todo inteiro à minha frente. Sei que é aquilo que quero fazer e mais nada. às vezes, depois, tento explicá-lo».
Sobretudo quando o obrigam. Mas só quem tiver acompanhado no decorrer desta semana a exibição dos seus filmes no Instituto Alemão é que pode avaliar como tudo o que atrás ficou escrito é quase nada. O que Werner Herzog é, está naquele seu modo de levar os nossos olhos a tocar as mãos, as bocas. a voz, os ruídos que nos mostra. Com insistência? a insistência
da própria realidade.
HELENA VAZ DA SILVA
Exibidos no Instituto Alemão:
«Terra do Silêncio e da Escuridão», «Fata Morgana», «Também os Anões Começaram por Baixo» e «Sinais de Vida».