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“Sou pintor para não ter que falar”

Helena Vaz da Silva entrevista o pintor Jorge Martins

Publicação · 1979-02-24
Expresso

"A PINTURA acabou de nascer. Está tudo por fazer" disse-me Jorge Martins quando o fui desencantar no seu atelier encarrapitado numa parisiensíssima "coto" perto da Bastilha para ver os seus últimos quadros de que me tinham chegado ecos. A última vez que se vira pintura sua em Portugal fora numa exposição que, por acaso, abriu dias depois do 25 de Abril. Ele voltou ao país nessa altura, depois de 14 anos de exílio. A sua pintura, essa, vinha a Portugal regularmente, pelas mãos de Manuel Brito — um dos principais artífices como se sabe, do "boom" artístico português do pré-25 de Abril. Dessa altura ficara-nos a memória dos corpos femininos, das transparências, dos quadros com muitos objectos. Chamavam-se, quase sempre ironicamente, "harem miope", "d, cunegundes da g. à espera do marido que foi à índia buscar pimenta para o jantar (ele demora-se e ela está cheia de saudades)...", “Joana à espera de marinheiro, mas desta vez com um armário de vidro", "celibataire revant d'être mariée et mise à nu".

Em 1975/76 Jorge Martins está em Nova Iorque e contacta com o que ele considera um ambiente "fabulosamente estimulante e não pedante". Volta a Paris e é convidado a expor no centro Beaubourg no princípio de 1978. Expõe desenhos em que a luz é o tema. Acompanha-os uma selecção de textos (de Pessoa, Novalis, Goethe, Kepler, René Char, Aristótes, Eliot) em que a luz é o tema.

Fiz com ele uma viagem por dentro da sua pintura de agora: em vez de senhoras, ovnis; depois, só luz, formas. Explosão do espaço.

Helena Vaz da Silva

—  V. É UM PINTOR português a que Portugal não põe a vista em cima. Pinta em Paris há muitos anos e agora ouvi dizer que quer ir definitivamente para Nova Iorque. A que se deve isso?

Jorge Martins — Quero ir-me embora de Paris porque Paris acabou, está morto. As pessoas só pensam no bifteck. Só o seguro é que conta.

Vivi em Paris quatorze anos e agora apetece-me vagabundear.  Já vivi um tempo em Nova Iorque, acho que Nova Iorque é fabuloso. Tem um ambiente estimulante e nada pedante. Quanto a Portugal, eu meti-me, entusiasmado, no primeiro avião que partiu de Paris para Lisboa a seguir ao 25 de Abril. Éramos uma quantidade de portugueses que não iam lá há algum tempo. Dizia-se mesmo no avião que se calhar íamos ser presos à entrada, mas eu queria ir à mesma. E depois... matei as saudades todas de Portugal em pouco tempo. O 10 de Junho liquidou o meu édipo com Portugal. Está arrumado.

— O que é que o estimula no ambiente artístico de Nova Iorque?

J.M. — Há grande pintura, como em mais parte nenhuma. Gosto muito de tipos da geração anterior como o Rotke, o Barnett Neuman. E desta geração o Stella e um tipo que é pouco conhecido aqui que se chama Marvin. Gosto muito do Robert Morrisson e do Dian Flavin.

— Mas na América o que se vê agora mais já nem é pintura, são os jogos com o espaço. O Robert Irwin, por exemplo...

J.M. — Jogos com o espaço...

A Capela Sistina é um jogo com o espaço. O Malevikh também é um jogo com o espaço. Mas há uma frase de Mallarmé que diz bem o que eu quero dizer. Ele fala do Whistler, pintor impressionista americano, e diz isto: "une rarefaction américaine vers la beauté ". É espantoso aplicar a palavra rarefacção à arte americana. Isso faz parte do lado da eficácia, sem complexos, do lado pioneiro dos americanos. Esse espírito, que começou com as primeiras procuras abstractas na Europa — com o Malevitch e os construtivistas -, encontraram na América terreno fértil para se desenvolver.

— E agora, da América, isso recai sabre a Europa.

J.M. — A Europa está agora a redigerir isso, bastante mal a meu ver.

— Na América, muito especialmente, hoje, a fotografia é uma das novas formas de expressão. Eu vejo que na sua pintura, desde sempre, os estudos sobre a luz têm tido grande importância e de modo particular nesta sua fase mais recente, a partir da exposição que V. fez no Centro Pompidou. A fotografia nunca lhe interessou?

JM — A fotografia interessa--me muito. Mas não me interessa como suporte da pintura. Fotografia é muito diferente de pintura. Na fotografia o que é importante é o que lá está, na pintura o que é importante é o que não lá está. Na pintura há uma descodificação a fazer. O objecto pintado é a descrição de uma coisa mental e indivisível. É um pouco como uma equação na física que nos dá conta do fenómeno, mas que não é o fenómeno.

— Mas isso aplica-se só à pintura?

J.M. — Acho que é a especificidade da pintura, sobretudo desde que ela ficou liberta de uma função iconográfica. A pintura acabou de nascer. Está tudo por fazer.

— E a necessidade do retorno à figuração, o que é?

J.M. — É outra coisa.

Repare, eu abandonei o lado figurativo na minha pintura porque estava a atingir proporções teatrais. O que não quer dizer que não volte a figurar, mas não necessariamente figuras humanas e paisagens, como eu utilizava antes como pretexto para construir os meus quadros.

O que se deu agora nos meus quadros foi uma explosão do espaço. No que eu faço actualmente, os elementos estão no espaço rectangular do quadro um pouco como as galáxias estão dispersas no universo. É um tipo de composição em que os elementos são independentes uns dos outros.

— Galáxias... Luz... V. abriu a certa altura para uma visão cósmica?

J.M. — Os nossos conhecimentos físicos relativamente ao espaço em que vivemos sofreram nos últimos anos a mesma revolução que no século XIV e XV. A natureza deixou de ter os limites do humano para dizer respeito a um espaço muito mais vasto. A amplificação dos conhecimentos de que o homem tem do espaço em que vive, com a teoria da relatividade e com a teoria dos quanta, foi uma revolução tão grande como a de Copérnico. Alterou o universo mental do homem. Eu sou extremamente sensível a essa mudança de espaço, mas não pretendo evidentemente, na minha pintura fazer uma ilustração de "science fiction".

— Os seus títulos são de uma maneira geral distantes e irónicos.

J.M. — Eu sou por natureza uma pessoa blasé e irónica. Mas essa atitude é uma maneira de me esconder.

— De quem?

J.M. — Dos outros. Eu sou pintor para não ter que falar.

— O Fernando Pessoa de quem V. tanto gosta deveria sentir a mesma coisa e, no entanto,passou a vida a falar.

J.M. — A falar não, a escrever, o que é muito diferente. Acabo de receber as Cartas de Amor do Fernando Pessoa e vê-se bem a diferença.

— Ou não. O que é que V. achou das cartas?

J.M. — É tristíssimo ver o tipo exilado em Lisboa. Suponho o que aquilo deveria significar: grande solidão, isolamento intelectual e sexual, naquela Lisboa que deveria ser pior ainda do que é agora.

— A última exposição sua foi a de Beaubourg e foi só de desenhos se exceptuarmos o único óleo (cósmico, aliás) que lá estava. A que corresponde isso? Há fases em que V. só faz desenhos?

J.M. — Raramente faço só uma coisa ou só outra. Mas gosto do desenho porque é rápido. Na fase anterior a essa exposição eu fiz de facto 2 a 3 desenhos por dia. Há alturas em que as ideias me vêm mais a preto e branco. É a diferença entre a música sinfónica e a música de câmara. Há um certo recolhimento no desenho que a pintura não permite.

— Tem mestres?

J.M. — O Pessoa, o Elliot, o Novalis. Pintores, tive muitos, mas digeri todos. Hoje todos são meus mestres. Na minha adolescência adorava o Dufy e o Ronault. Depois o Klee.. Há outros que continuam muito misteriosos para mim como o Pierro della Francesca, o Ucello... são pintores que têm muito a ver com o espaço de que eu ando à procura, apesar da perspectiva ter desaparecido, talvez temporariamente, da minha pintura. Com esta maneira que tenho agora de organizar o espaço.

— V. fala dessa maneira como de uma fatalidade. Aconteceu-lhe... esta explosão do espaço vai conduzir ainda no quadro vário?

J.M. — Talvez não fosse má ideia. Mas não, não creio, um espaço precisa de marcos para o definir.

- Quem são os pintores actuais de quem V. se sente mais próximo?

J.M. — Há um tipo italiano que já morreu que se chama Domenico Gnoli, um tipo na tradição da renascença italiana.

Os portugueses conheço mal, estive 14 anos sem ir a Portugal e só lá fui algumas vezes no Verão quando havia exposições importantes. Mas um país só tem pintura depois de várias gerações de pintores profissionais, isto é, que podem viver só da pintura. Nos 3 ou 4 anos que antecederam o 25 de Abril pela primeira vez uma geração de pintores pôde viver da sua pintura, embora numa certa confusão gerada pela discrepância entre os valores que lhe atribuíam em Portugal e que não tinham correspondência cá fora.

— Era artificial, nem sequer correspondia ao país nem à sua realidade económica e cultural. Passando para o cinema: V. agora é proprietário de uma sala de "arte e ensaio" em Paris. Quer isso dizer que se está a virar mais para o cinema?

JM — O cinema sempre me interessou muito. Vejo mais filmes até que exposições e penso mesmo vir a fazer cinema em breve. Já me meti a fazer um sobre a Vieira da Silva, que por motivos que não vou voltar a contar aqui, tive de abandonar a meio e acabou por aparecer sob o nome de José Álvaro Morais. Mas tenho outros projectos que talvez se realizem, um deles é com o António Pedro Vasconcelos e o Mário Barroso, que é operador aqui em Paris, sobre o exílio e os exilados portugueses.

— Mas como surgiu a ideia de comprar o "Action-Republique"?

JM — Quando eu era pequeno, o meu maior desejo era que o meu pai tivesse um cinema, mas ele era oficial de Marinha...

— Ele tinha na profissão o seu próprio cinema...

J.M. — Quando o Paulo Branco, que já estava há anos ligado ao cinema aqui em Paris, me propôs a compra desta sala eu arranjei um coleccionador meu amigo que me emprestou uma parte do dinheiro e obtivemos também um apoio do IPC, através do Seixas Santos, mediante o compromisso de exibirmos 4 filmes portugueses por ano no nosso cinema. Iniciámos a actividade dia 5 de Outubro de 77 e já cá passou o "Trás-os-Montes" com muito êxito. Vai passar a “Torre Bela" do Michael Harlan , para o mês que vem e a seguir iniciaremos a retrospectiva Manoel de Oliveira, em que se incluirá o "Amor de Perdição". O "Amor de Perdição" foi selecionado para a "Semaine des Cahiers du Cinema" que se realiza, como habitualmente no nosso cinema, e entrará em exibição comercial a seguir. A "Benilde" também vai sair comercialmente numa sala. O "Amor de Perdição", para mim, é um filme excepcional em termos de mise-en-céne e movimento. Raramente vi um filme em que o "cadre" seja utilizado com tanta eficácia, raramente vi um "zoom" tão dramático.

— Que outros filmes portugueses tenciona trazer cá?

J.M. — Há autores como o António Pedro, o Seixas, o Paulo Rocha e o César Monteiro que teremos sempre prazer em passar cá. Mas tanto eu como o Paulo não acreditamos muito no cinema português, por enquanto.

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